São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 1995
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Onde enfiar o pronome

JOSUÉ MACHADO

Estada e estadia, morada e moradia, melhora e melhoria. Quando usar uma ou outra dessas formas? É o que pergunta a leitora Elenir Eller Cordeiro, de Rubiataba, Goiás, cidade que não tem livraria, ela diz com tristeza.
O sentido desses pares de palavras se mistura e confunde cada vez mais. Em relação à estada/estadia é mais evidente a diferença entre ambas. É só ver o sentido de cada uma de acordo com os dicionários Aurélio e Aulete.
Estada -Ato de estar, demora, permanência, estância. ``Depois de sua estada na prisão, Oscar Wilde dizia -oh!- que a sua rota era a de São Francisco de Assis... (Álvaro Lins).
Estadia - Prazo concedido para carga e descarga de navio ancorado em um porto; estalia. Direito pago por estar um veículo certo tempo num lugar. O Aurélio registra estadia também como sinônimo de estada, para tristeza dos puristas, porque o sentido original de estadia obviamente não é o mesmo. Mas o povão já começa a comer a diferença por falta de gás e de melhores pratos.
Morada - Lugar onde se mora ou habita, habitação, moradia. Casa. Estada ou lugar de estada habitual.
Moradia - Morada. Pensão que se dava aos fidalgos dantanhos.
Melhora - Ato ou efeito de melhorar. Melhoria; transição para melhor estado ou condição.
Melhoria - Melhora, melhoramento. Melhor estado; superioridade.
``Em `fui ao cinema' a expressão `ao cinema' é adjunto adverbial ou objeto indireto?", pergunta mais Elenir. É objeto indireto. O verbo ``ir", como o pefelê, pode ter complementos de todos os tipos.
Nos exemplos ``Sarney disse que ia para o Maranhão, mas ficou entre nós" e ``Se eu fosse à Câmara e ao Senado ficaria feliz por ver tanta gente boa", ``para o Maranhão", ``à Câmara" e ``ao Senado" também são objetos indiretos.
Em ``iremos ao acaso" e ``iremos rapidamente", ``ao acaso" e ``rapidamente" são adjuntos adverbiais.
Outra dúvida de Elenir: ```Preferir do que' já foi liberado ou ainda vigora regência `preferir a"'? Gilberto Dimenstein escreveu em sua coluna: ``Preferimos gastar mais dinheiro para cuidar das mulheres traumatizadas do que evitar que elas sejam levadas ao aborto."
O computador dele deve ter-se distraído. O fato é que, de tantas distrações, daqui a algum tempo a maioria estará escrevendo ``preferir do que", porque falar, já falam quase todos. O verbo ``preferir" até agora pede objeto direto (prefiro o amor) ou objeto direto e indireto com a preposição ``a" (Prefiro o amor ao carinho). Preferir uma coisa ``do" que outra, por enquanto, é sabotagem de computador.
Elenir tem mais dúvidas. Personagem é palavra masculina ou feminina? É feminina de nascença. Seu uso como masculina é considerado galicismo por especialistas exigentes. No entanto, até os bons dicionários já a registram com os dois gêneros e pouca gente chora por isso, porque ótimos escritores a usaram como masculina. Provém do latim personaticus, pelo francês personage, substantivo masculino. ``Personagem muda" é expressão tradicional no ``tchatro", que é como o pessoal do teatro fala teatro.
Por fim, Elenir pergunta se continua havendo regras para colocação dos pronomes átonos ou se ficou tudo por vontade do freguês. O freguês tem força, mas nada liberou geral, a não ser na política e na administração pública, faz tempo. As regras de colocação dos pronomes pessoais oblíquos átonos ainda estão em vigor, prontas para ser descumpridas. Elas se baseiam na frequência de uso dos bons autores e também nos costumes, nem é preciso dizer. Como o peso do Popular da Silva cresce e o da escola diminui, a influência dele aumenta cada vez mais na linguagem, de forma que há certo relaxamento na colocação pronominal brasileira. Mas convém que os profissionais da escrita continuem tentando seguir as regras principais, para que a maioria continue se entendendo.
O certo é que, no Brasil, de maneira geral, coloca-se o pronome antes do verbo, a velha próclise.
Costuma ocorrer próclise se houver na oração:
1. palavras de valor negativo (não, nada, ninguém, nenhum, nem, jamais etc). ``Ninguém a quer por ser quenga";
2. pronomes relativos (que, quem, como, cujo etc). ``Quem a quer mais do que eu?";
3. conjunções subordinativas (quando, que, ainda que, se, embora etc). ``Caí de costas quando a vi daquele jeito";
4. advérbios (aqui, agora, hoje etc), indefinidos (nada, alguém, algo etc) e até pronomes pessoais. ``Agora a tenho", ``Alguém a viu?", ``Eu a quero".
Em outros casos, prevalece a ênclise, pronome depois do verbo. Da pouco usada mesóclise, falar-se-ia se houvesse espaço. O que não se pode ainda é começar orações com pronomes átonos, nem meter a mão na grana do Orçamento, nem no bolso do povo com novo IPMF e outras marotagens, nem receber dinheiro de lobistas para se eleger. Coisa feia. Que o ebola (sem acento) consuma quem fizer tais coisas.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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