São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 1995
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Congresso reage contra letra adolescente

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

F alar da burrice da censura é sempre uma obviedade, mas é difícil escapar do óbvio no caso do rock "Luiz Inácio (300 Picaretas), do grupo Paralamas do Sucesso.
A música ia ser tocada num show em Brasília, sexta-feira passada, mas a Justiça Federal impediu sua execução.
O óbvio, como sempre, é o seguinte: não fosse a censura, ninguém teria prestado maior atenção à letra dos Paralamas. "Luiz Inácio (300 Picaretas)" ganhou com o episódio uma enorme divulgação.
Leio a letra na Folha. Não há nada ali que já não tenha sido dito e repetido por qualquer cidadão medianamente informado.
"Parabéns coronéis, vocês venceram outra vez/O Congresso continua a serviço de vocês/Papai, quando eu crescer eu quero ser anão/Pra roubar, renunciar, voltar na próxima eleição".
É um texto paupérrimo; tem aquela veracidade catatônica, o prosaísmo cretino, a incapacidade total para fugir do clichê que são típicas de uma imensa maioria de jovens bem-intencionados.
Aliás, a própria música fala de "uma imensa massa de iletrados" e, num esforço de lucidez, declara: "Eu me vali desse discurso panfletário/Mas a minha burrice faz aniversário".
Deviam processar a banda por falta de originalidade. Estranhamente, toma-se tudo como se fosse um escândalo, uma ousadia jamais dita, e eis o deputado Bonifácio de Andrada (PTB-MG) pedindo a censura da música.
É difícil entender o mecanismo mental dos parlamentares que querem a proibição. Deveriam saber que só contribuem para divulgar a mensagem dos Paralamas.
Mas talvez isso não seja o mais importante; prevalece a sensação de terem sido ofendidos -e reagir à ofensa, de algum modo, é atitude que se faz cegamente, sem perceber o quanto isso beneficia o adversário.
Os Paralamas não merecem esse presente. A crítica atingiu o alvo. Tinha tudo para não ser uma peça corrosiva; tratava-se apenas de crítica banal e rotineira.
Mas é como se, resumindo o que qualquer um diz num ponto de ônibus ou numa barbearia, desse corpo a um adversário genérico que os parlamentares-censores não tinham como combater; esse adversário é a própria opinião pública.
Na impessoalidade do texto, na sua constrangedora falta de sutileza e de elaboração, torna-se quase impossível distinguir uma idéia de "autoria".
Quem é o réu? Quem é o criador da letra? Qual a opinião pessoal, o ânimo subjetivo que organiza a letra dessa música?
Praticamente inexistem. Aliás, o texto já faz a própria defesa: "Eles ficaram ofendidos com a afirmação (de que existiriam 300 picaretas no Congresso)/Que reflete na verdade o sentimento da nação".
Os Paralamas se tornam bodes expiatórios de toda a opinião pública. Vingar-se disso, pretendendo a censura, torna-se por sua vez quase uma confissão de culpa. Pois, ao mesmo tempo em que consideram a música uma ofensa inadmissível, os defensores da proibição fizeram o máximo para divulgá-la.
Encontraram o que estavam procurando: um objeto palpável, uma peça que resumia tudo o que notoriamente se diz a respeito do Congresso.
Nessa descoberta, parece haver uma espécie de euforia. Insultados cotidianamente à boca pequena, os parlamentares-censores se entusiasmaram com um texto que expressava aquilo que sempre ouviram.
Inconscientemente, deram-lhe notoriedade -caíram na armadilha de censurar, de criar caso, de se ofender.
Um perfeito picareta não se sentiria, a rigor, atingido pela crítica de Herbert Vianna e seus companheiros de trabalho. Diria que não é com ele.
Há então outro entusiasmo em jogo. Sentir-se ofendido é descobrir, com algum maravilhamento, que ainda há reservas insuspeitas de honra a defender, a despeito da corrosão cotidiana sofrida pela auto-imagem, ao longo de inglório currículo político.
O caso se torna duplamente comovedor. De um lado, temos a pobreza de recursos expressivos dessa letra.
Tem o ar incomparável do adolescente que, pela primeira vez na vida, resolve falar de um assunto adulto, e reproduz, toscamente, convicções políticas que julga serem suas; engrossa a voz, proferindo banalidades num ato de coragem; encanta-se consigo mesmo, no momento exato em que se torna igual a todos os outros.
Os censores do Congresso, de modo inverso, reagem como adolescentes num campinho de futebol. Há certa pureza rudimentar na briga que compram com os Paralamas do Sucesso. Opa... aí ofendeu... ô meu, qualé?
E o episódio se esclarece plenamente quando Agnaldo Timóteo, deputado do PPR do Rio de Janeiro, diz que para falar mal do Congresso não se pode fumar maconha nem cheirar cocaína.
Herbert Vianna reage: "Vou processá-lo. Eu me disponho a fazer um exame toxicológico completo para provar que não uso drogas".
Entramos num campeonato de bom-mocismo. E é irônico que um dos mais diletos representantes da velha guarda na música popular, Agnaldo Timóteo, se insurja contra os roqueiros do Paralamas. Conflito de gerações? Acho que não diretamente.
Na verdade, a disputa se dá em torno da breguice, do popularesco. Quem expressa melhor os sentimentos "do povo"? Pode-se falar muito mal de Agnaldo Timóteo, mas uma coisa sempre se admitiu: "Ele é autêntico pra caramba. Agora, é Herbert Vianna "o autêntico pra caramba".
Não há nada pior do que censurar quem é "autêntico pra caramba". Pois isso acaba expondo todo mundo a um convívio com a "autenticidade" que, francamente, desde os tempos de Figueiredo já deu o que tinha de dar.
Nem Maluf, hoje em dia, é "autêntico". Tivemos um progresso. Pena que os "rappers" e alguns parlamentares não tenham percebido isso.

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