São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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A geometria do tempo

OLGÁRIA CHAIM FERES MATTOS

Revista de História de Arte e Arqueologia nº 1 Vários autores Editoria do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas R$ 20,00

A geometria, ``alma ontológica do mundo", organon das ciências e das artes, é o índice preferencial de ingresso nos ensaios do nº 1 da ``Revista de História da Arte e Arqueologia", editada sob a direção dos professores Jorge Coli e Pedro Paulo Funari. O periódico anual preenche a lacuna nos estudos de filosofia da sensibilidade e da memória material da cultura. Vem, ainda, reinterrogar o modo de acesso aos bens culturais. Da ``Concepção do Espaço na Grécia Antiga", passando por ``O Impasse da América na Mitologia Clássica", ``Cybele, Um Anacronismo na Biografia de Vasari de Michelangelo e Suas Razões", ``O Verão ou Diana e Actéon de Delacroix: Uma Versão Moderna de Uma Tragédia", entre outros extraordinários ensaios, a revista traz às humanidades elaborações das quais não estão ausentes os conceitos de espaço e tempo, natureza e razão nas investigações arqueológicas, bem como nas artes visuais e edificatórias.
Geometria simbólica, imanente a um espaço aurático, diáfano e inefável, estranho à determinação -como a khora grega-, reversível e indefinível. É esta a compreensão platônica do espaço, noturna e sonhadora, indócil a toda definição: ``Percebemos o espaço", escreveu Platão, ``como num sonho, quando afirmamos que todo ser está forçosamente em alguma parte, num determinado lugar, que ocupa uma determinada porção do espaço e que tudo o que não está nem na Terra nem em parte alguma do céu é absolutamente nada. Todas estas observações, porém, que têm por fim a natureza deste ser tal como é em realidade e fora do sonho, em estado de vigília, não nos tornam capazes, em virtude mesmo desta espécie de sonho, de distingui-las nitidamente e de dizer o que é verdadeiro" (``Timeu"). Outra maneira de dizer que não se concebe o que o espaço é. Se, por exemplo, avançamos na direção da linha do horizonte, ele foge; se nos voltamos para a direita, ele se afasta. Impossível localizar o alto e o baixo definitivos, a guarda e a retaguarda. Não existindo direção absoluta para a compreensão da ordem inteligível, o espaço é alogon, ``idéia obscura e difícil de captar", é ``causa errante".
De enigma, o espaço se verá kantianamente convertido a intuição, condição interna do conhecimento e de acesso aos fenômenos espaço-temporais: ``Jamais será possível representar que não há espaço", anotou Kant, ``embora se possa muito bem pensar que nele não se encontre objeto algum. É ele, portanto, considerado a condição de possibilidade interna e subjetiva da sensibilidade" (``Crítica da Razão Pura").
De mistério a intuição, o espaço se constitui como a priori de uma ciência objetiva e neutra, contrafação da perplexidade clássica. E assim o é, para uma racionalidade diurna e desperta: iluminista. A razão das Luzes dissipa a apreensão sonhadora e noturna, mas também cosmológica e política, como a de Platão: ``A pólis era vista espacialmente como expressão de duas dimensões, uma cosmológica, outra política. Assim, ela é circular como a Terra e o universo e, como eles, tem um centro, a ágora. Esta organização cósmica é geometricamente isomórfica a uma organização política, baseada nos conceitos de equidistância de todos os cidadãos ao centro político e de simetria, equilíbrio e reciprocidade" (Legopoulos, ``Semiótica e Arqueologia - As Belas-artes e a Concepção do Espaço na Grécia Antiga").
Na ``Revista", o assimétrico e descontínuo dos trabalhos encontram unidade: destinam-se ao expert, mas também ao antiespecialista -vocação humanista que não faz tabula rasa da tradição, mas estabelece com ela diálogo e interlocução. É assim que, em ``Um Manuscrito Inédito de Tommaso Minardi ou Sobre os Poderes da Geometria", acompanhamos uma reflexão sobre o espaço do geômetra, reflexão que se contrapõe à abstração quantificadora da razão iluminista. Esta, sabemos, buscou a evidência racional. Que se pense na ``Astronomia Nova", de Kepler, que desfaz, pela primeira vez, a distinção milenar entre a lux divina e o lumen naturale, dado que, à análise geométrica da luz, é indiferente a diferenciação entre o luminoso e o iluminado. Essa mudança científica viria a conhecer grande êxito, com consequências de largo alcance: o universo, até então obra de Deus, resulta agora de um cálculo geométrico da luz, convertendo-se a criação em obra da geometria divina. Para Descartes, por exemplo, Deus inscreveu a geometria em nosso intelecto, de tal forma a oferecê-lo ao conhecimento humano da mesma maneira como Deus o conhece: ``Nossa visão (intelectual) e a de Deus finalmente coincidem. O lumen naturale é capaz do mesmo conhecimento que a lux divina". Essa geometria que esquadrinha o espaço, encolhendo a distância num ponto de proximidade, secularizando, de uma só vez, o espaço, o tempo, o corpo e a alma -procura ordenar o mundo para produzir evidências, idéias claras e distintas, conforme a determinação das demonstrações algébricas. Assim, a experiência do ver só servirá à arte de ver se passar pelo crivo de uma teoria fisico-matemática da luz, da fisiologia da visão, baseada nos princípios da nova mecânica (a do séc. 17). Com o que, o pensamento geométrico procura exorcizar espectros e fantasmas da visão, convertendo-os em ilusões dos sentidos, desprovidos de qualquer função em um mundo visível, quer dizer, evidente.
Diante desse logos triunfante, da ratio abstrata e quantificadora, a geometria de Tommaso Minardi encontra, mostra-nos Jorge Coli, pelo extremo do rigor, a máxima liberdade. A geometria é aqui ``antiiluminista", é mais que fator neutro e objetivista de inteligibilidade da natureza. Ela se apresenta segundo uma precisão ``que se transforma numa espécie de meio, de medium espiritual (...): o artista incorpora em si próprio uma geometria cujo valor desaparece se for produzida com régua e compasso". A linha não é um traçado abstrato, mas ocupa o lugar de fundação, de fundamento: ``A linha de Davi", escreve Jorge Coli, ``é instrumento iluminista, enciclopédico, capaz de retratar todas as manifestações visíveis do mundo. Ela se vincula, antes de tudo, a um realismo da observação, ela serve como continente dos corpos, ela corrige e fixa os seres em instantes de eternidade, mas para lhes aumentar ainda mais o grau de realidade: uma realidade indestrutível, emblemática, feita de formas plásticas, palpáveis. A linha de Minardi, isto é, a de Protógenes, a de Apeles; e as formas de Minardi -menos as de Giotto que as do círculo de Giotto, não são instrumento de qualquer realismo: são moradas de uma espiritualização".
A ``Revista" é de vanguarda: rompendo o bloqueio da língua portuguesa e o das revistas nacionais de circulação internacional, reúne ensaios em diferentes idiomas, acompanhados de tradução. É de vanguarda, também, em sentido mais essencial, pois mostra que toda verdadeira vanguarda não é efêmera; ao contrário, torna-se clássica. Generoso cosmopolitismo de uma publicação que se dá numa época de retorno a fundamentalismos religiosos, ódios étnicos e fragmentação cultural. Não renuncia -em plena vigência do culto midiático à facilidade e ao substituível- ao significado de que somos herdeiros de nossa pré e de nossa pós-história, de que, no universo da cultura, todas as épocas são contemporâneas.

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