São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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As duas mãos da política

ROLF KUNTZ

Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política
Norberto Bobbio Tradução: Marco Aurélio Nogueira Unesp, 136 págs. R$ 11,70
Os Novos Desafios da Justiça do Trabalho
José Eduardo Faria LTr, 159 págs. R$ 16,50

Oportuno pelo tema, deficiente pelos argumentos e escatológico no final é o novo livro de Norberto Bobbio, ``Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política". Bobbio escreveu o volumezinho, cerca de uma centena de páginas, para afirmar, contra uma das modas mais bobas dos últimos tempos, a atualidade da oposição direita-esquerda. Historicamente, segundo o filósofo, a díade representa, acima de tudo, os conflitos a respeito do tema desigualdade-igualdade. Esse é o miolo de seu argumento. É um critério não só para distinção entre os dois termos, mas também para a verificação de seu significado atual. Se a dicotomia ainda não pode ser considerada peça de museu, é porque o problema prático não se esgotou.
Bobbio falha, no entanto, na exploração deste ponto. Ele registra a bipolarização da política tanto na linguagem diária quanto nos discursos de campanha. Menciona movimentos facilmente classificáveis como de esquerda ou direita (a candidatura Berlusconi, por exemplo), mas quase sempre renuncia ao trabalho braçal do analista político: em geral, passa longe das enormes transformações econômicas da última década, nunca discute as implicações da globalização, não menciona as mudanças no mercado de trabalho, nem o avanço da desigualdade, mesmo em sociedades do Primeiro Mundo. Diante de uma questão que exige uma resposta empírica (tem sentido, e com que critério, falar em direita e esquerda?), ele quase se limita à exploração de fatos da linguagem.
Por tudo isso, não surpreende o encerramento do livro com uma declaração de otimismo: ``O impulso em direção a uma igualdade cada vez maior entre os homens é, como Tocqueville havia observado no século passado, irresistível". De tão irresistível, o movimento pode acabar transbordando e indo além da humanidade, para abranger também outras espécies. Por que não? Afinal, como disse o ex-ministro Rogério Magri, cachorro também é gente. O otimismo de Bobbio, ao contrário da percepção de Tocqueville, exige um pescoço de girafa: ``E é certo que, para apreender o sentido deste grandioso movimento histórico, deve-se erguer a cabeça além das escaramuças cotidianas e olhar mais alto e mais longe".
Ele pode até estar certo quanto ao longo prazo. O horizonte mais próximo, porém, é muito menos entusiasmante. A Europa é próspera, mas o desemprego na União Européia afeta cerca de 11% da força de trabalho. É muito menor nos Estados Unidos, algo próximo de 6%, mas a distribuição de renda piorou entre os americanos desde o início dos anos 80. Em todo o mundo rico, aumentou o número dos excluídos. A revolução tecnológica e gerencial mudou os critérios de diferenciação dos trabalhadores. Profissionais antes qualificados, hoje valem muito menos, no mercado, e estão formando uma nova casta inferior. Tudo isso é nutrição de primeira para a intolerância, o nacionalismo e o racismo.
Nos pontos mais importantes, o livro de Bobbio acaba sendo tão atemporal quanto um teorema de lógica simbólica. Depois de gastar dois capítulos verificando, simplesmente, a permanência da dicotomia, na linguagem corrente e nos debates políticos, ele decide enveredar por uma argumentação teórica. O universo político, observa, é formado por antagonismos em geral redutíveis a relações bipolares. No limite, vale a concepção schimittiana da distinção amigo-inimigo como a marca essencial do político.
Assentado esse ponto, o uso das dicotomias ganha um fundamento teórico. Mas por que exatamente a díade esquerda-direita? De onde vem sua relevância, hoje? A referência à dicotomia desigualdade-igualdade fornece um critério de classificação política e um indicador de significação: tem sentido falar em direita e esquerda enquanto houver o confronto entre igualitários e inigualitários. Mas qual o significado e quais as bases desse confronto, neste momento? Bobbio contorna essas questões e quase se limita, no final, a traçar uma tipologia de posições políticas. A extrema-esquerda inclui movimentos igualitários e autoritários. A extrema-direita, os antiliberais e anti-igualitários. A centro-esquerda corresponde a doutrinas e movimentos simultaneamente igualitários e libertários (como a social-democracia). A centro-direita corresponde às idéias libertárias e inigualitárias, típicas de conservadores fiéis aos métodos democráticos e ao igualitarismo mínimo, isto é, meramente legal.
Não há, portanto, uma correspondência entre as díades moderação-extremismo e direita-esquerda. Ao contrário: moderados e extremistas podem ser encontrados nas duas metades do espectro. Bobbio se identifica com a posição de centro-esquerda, afirmando sua preocupação com as dimensões tanto formal quanto substantiva da democracia.
Há uma rica literatura para servir de contraponto empírico ao livro de Bobbio. Empírico, neste caso, designa o esforço de coleta, ordenação e exame do material da história recente. Os problemas criados pela mudança econômica, tecnológica, política e social dão um tom dramático a títulos e subtítulos. ``Repenser l'État Providence" é a tarefa indicada no subtítulo do último livro de Pierre Rosanvallon, ``La Nouvelle Question Sociale", editado na França em janeiro deste ano. Também de 1995 é o volume ``Os Novos Desafios da Justiça do Trabalho", de José Eduardo Faria, professor do departamento de filosofia e teoria geral do direito da faculdade de direito da USP. Este é um trabalho particularmente interessante para o leitor brasileiro. A partir de uma perspectiva especial, compõe um quadro de uma sociedade em mudança, forçada a ajustar-se a um novo paradigma de produção e de concorrência internacional. É difícil encontrar os termos direita e esquerda no texto de Faria. No entanto, se alguém quiser um bom argumento para mostrar a atualidade e a pertinência da dicotomia, poderá achá-la sem dificuldade nas 159 páginas desse estudo.
Não se trata apenas da velha questão do acesso desigual à justiça. Às antigas deficiências do Judiciário somam-se novos problemas e limitações. Alteram-se os padrões de contratação e de administração de mão-de-obra. Atividades-meio são terceirizadas. Grandes empresas concentram seu esforço direto na montagem final de produtos, passando a firmas fornecedoras uma parcela crescente do trabalho. Categorias profissionais se desmembram e, onde havia homogeneidade sindical, passa a haver diferenciação. Com isso, novos fatores de desigualdade entram em jogo.
Trabalhadores poliqualificados e versáteis, dentro do novo padrão imposto pela reforma da empresa, entram em alianças com os empregadores, aceitando ``o princípio de que a manutenção de seus postos de trabalho depende, basicamente, do poder de competição e de ganhos sucessivos de produtividade de suas empresas". Ao mesmo tempo, ``trabalhadores menos qualificados, aqueles com baixo grau de escolaridade, curta experiência de treinamento e absoluta incapacidade tanto de operar sistemas produtivos informatizados quanto de supervisionar conjuntos de equipamentos integrados, cada vez mais tendem a ser jogados para fora do sistema produtivo e expulsos da economia formal -ou seja, condenados ao desemprego crônico ou estrutural".
Para competir e se ajustar às novas condições internacionais, o sistema empresarial tende a impor a ``flexibilização" da produção e das relações de trabalho. Isso não só altera as condições de emprego como tende a ``reduzir drasticamente a proteção jurídica dispensada aos trabalhadores e a liquidar as garantias dos desempregados, aumentando os problemas de integração de uma sociedade fragmentária, conflituosa e explosiva, e minando as bases do próprio regime democrático".
Em tudo isso há pelo menos um ponto engraçado. Por sua incompetência em reconhecer e analisar as novas condições da economia mundial (isto explica a permanência de discursos típicos dos anos 50), a esquerda chegou tarde ao exame das novas facetas da desigualdade. Pelo menos a esquerda tradicional. Coube aos outros a tarefa de mostrar que a dicotomia direita-esquerda continua plena de sentido.

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