São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Murilo por inteiro

SEBASTIÃO UCHOA LEITE

Poesia Completa e Prosa
Murilo Mendes Organização, edição e notas: Luciana Stegagno Picchio Nova Aguilar, 1782 págs. R$ 89,00

A obra poética de Murilo Mendes, reunida há não muito tempo atrás num único volume, organizado pela ensaísta Luciana Stegagno Picchio, se tornou, para os leitores de hoje, a redescoberta de um mundo submerso, que surpreende pela sua atualidade. Suas surpresas são muitas e para serem apreendidas com precisão ainda será preciso algum tempo. Assim, as notas que se seguem têm apenas a intenção de traçar algumas coordenadas, algumas trilhas dentro da selva linguística deste antigo-novo poeta. Tais notas serão provavelmente ainda rearticuladas para uma visão crítica mais particularizada da poética de Murilo Mendes e de suas complexidades semânticas e formais, visando a abranger o quanto possível a sua totalidade.
O juízo dessa totalidade é difícil. A obra de Murilo Mendes abarca direções múltiplas, deixa no ar contradições e indagações e, no final, o autor parece mudar radicalmente sua orientação estética. Mas, ao embrenhar-se no seu labirinto, o leitor percebe que faces esquecidas reemergem, como se houvesse uma ânsia de retorno às origens, e, vendo-se de perto, as mudanças não são radicais a ponto de haver renegação da obra anterior, exceto num caso esporádico. Estruturalmente, o poeta que estreou em ``Poemas" permanece igual a si mesmo no último livro, publicado fora do país e escrito em italiano, ``Ipotesi" (Hipóteses). E até no último publicado no Brasil, ``Convergência", repercutem ecos da intensa aventura poética iniciada com ``Poemas", em 1930. Sem dúvida, a obra inicial coloca as pedras fundamentais de uma trilha múltipla: dela sairão várias direções, mas três básicas: a do poeta crítico-irônico, a do poeta voltado para a cotidianidade e a do poeta voltado para a reflexividade.
A primeira prolonga-se em ``Bumba meu Poeta" e ``História do Brasil" -o primeiro, sobre a situação do poeta no quadro social, de onde acaba sendo deslocado, como os poetas são expulsos da república platônica; e o segundo, renegado depois (injustamente), faz uma antipoética e ácida paródia da ``história oficial" e seus clichês. A acidez irônico-crítica se recolherá na obra do poeta e se metamorfoseará no humor mais ``filosófico" dos paradoxos e jogos linguísticos. Estes já nasceram do primeiro texto do livro inicial, uma paródica ``Canção do Exílio" que transforma ``palmeiras" em ``macieiras da Califórnia", o ``sabiá" em ``gaturamos de Veneza", os ``sargentos do exército" em ``monistas, cubistas" e os ``filósofos" em ``polacos vendendo a prestações".
Parecia instalada a confusão, mas a desordem antitética seria a marca do poeta que impulsionaria uma originalíssima máquina de ``visões". E logo deságua em ``O Visionário"(1933-34), que junta as outras direções já assinaladas: a visão da materialidade cotidiana e a reflexão sobre os processos vitais. De versos como ``Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem" e ``Me desliguem do mundo das formas", e do poema ``Mapa", um verdadeiro manifesto do desconjuntamento das coisas do mundo, daquele livro inicial, nasce o fluxo torrencial de imagens de ``O Visionário", que celebra os ciclos diversos de transformação da vida, vista em seus aspectos mais cotidianos. Homológico ao seu dualismo matéria/espírito, há, nessa obra, um semicompromisso entre o coloquialismo (mais de processos sintáticos) e a atenção à norma culta, jogo dual que persistirá em obras posteriores.
O poema ``Jandira" seria o exemplo máximo da metáfora transbordante da força da matéria de ``O Visionário". Mas é um jorro domado: as três partes do livro transmitem a idéia de caos ordenado, entre a ``híbris" do visionarismo e a absorção do mundo material. Posterior, ``Tempo e Eternidade" tenta dar uma resposta religiosa a esse caos hiperbólico, mas infelizmente é sem força poética para isso e decepciona diante da riqueza imagética do livro anterior. Os livros seguintes formam uma espécie de ciclo: ``Os Quatro Elementos", ``A Poesia em Pânico", ``As Metamorfoses" e ``Mundo Enigma". Afastam-se da ``substância que preside as eras", o tedioso ``essencialismo" conceitual de Ismael Nery, que tinha se sopreposto às ``almas desencontradas" de ``O Visionário".
De certo modo, a inquietação de ``Poesia em Pânico" foi uma correção dos excessos messiânicos do livro anterior. E a ele sucedem as visões concretas de ``Os Quatro Elementos", onde referências míticas fundem-se a imagens realistas (``O Observador Marítimo"), recobra-se o humor perdido em ``Tempo e Eternidade", reforça-se a idéia de desmontagem criativa, incorporam-se elementos de problematicidade ``demoníaca" em ``A Poesia em Pânico"(``A fulguração que me cerca vem do demônio") e expande-se a sensualidade ``herética", ainda nesse livro. E mais: acentuam-se as dualidades e os contrastes através das imagens ``barrocizantes", como no poema ``O Visionário" de ``As Metamorfoses": ``Eu vi os anjos nas cidades claras/ Nas brancas praças do país do sol" e ``Na manhã aberta é que vi os fantasmas/ Arrastando espadas nos lajedos frios/ Ao microfone eles soltavam pragas". Também se torna mais clara, nesses livros, a delimitação de formas, que em ``Mundo Enigma" se acentua. Compare-se, por exemplo, o poema dedicado a Vieira da Silva em ``As Metamorfoses" com o ``Harpa-sofá", de ``Mundo Enigma", mais objetal. A linguagem mista de referências míticas e concretas (``últimas notícias de massacres") chega ao auge e ``transborda" no famoso ``Poema Barroco": ``Os cavalos da aurora derrubando pianos/ Avançam furiosamente pelas portas da noite".
Uma ligação secreta une ``Poemas", ``A Poesia em Pânico", ``Os Quatro Elementos", ``As Metamorfoses" e ``Mundo Enigma". Eles fundam a ``estética de base" de Murilo Mendes, com os seguintes princípios: 1) o predomínio intenso das imagens visuais, que dão um caráter plástico a essa poesia; 2) a idéia permanente de montagem/desmontagem, que, além do caráter plástico, traz consigo a idéia de movimento e ritmo; 3) o processo de construção que configura a sua obra como um jogo de antíteses; 4) certa politonalidade poética que permite misturar elementos ``poéticos" com os ``antipoéticos", segundo as visões ortodoxas; e 5) certa dissonância contrastante no uso dos elementos lexicais. Todos esses aspectos configuram a permanente preocupação formal na poesia de Murilo Mendes, que, por trás do seu singular ``desconstrucionismo", guardou sempre uma secreta ânsia de ordem em todas as suas fases, conseguindo unir, como num grande paradoxo, esta obsessão ordenadora e a vertigem e o fascínio pelo caos. Ao longo da sua obra, vários poemas se apresentam como emblemáticos dessa tendência dualista que o seguiu até o fim.

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