São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Enredos da história

PETER BURKE

Meta-História: A Imaginação Histórica do Século 19
Hayden White Tradução: José Laurênio de Melo Edusp, 464 págs. R$ 31,20

Hayden White é um professor da Universidade da Califórnia, que trabalha nas fronteiras entre história, literatura e filosofia, sendo, por este motivo, repudiado pelos profissionais das três disciplinas, numa época que se diz afeita à interdisciplinaridade. Mesmo assim, goza de reputação internacional ou, melhor dizendo, de dois tipos de reputação. Para muitos intelectuais, ele é um guru, um crítico cultural, um intérprete superior da pós-modernidade. Para outros, sobretudo historiadores, sua reputação lembra a dos ateus do século 17 ante os olhos do clero da época. Para certos historiadores, notadamente Gertrude Himmelfarb e Arnaldo Momigliano, já morto, White é o exemplo horrível de um colega (ou seria melhor dizer ex-colega?) que cometeu traição, quebrou um tabu e violou a fronteira sagrada entre história e ficção. Será que ele merece uma dessas reputações, de guru ou de renegado?
Para responder tal questão, é necessário retomar os estudos realizados por White no final dos anos 60 e início dos 70, época em que a maioria de nós ainda não se sabia pós-moderno; retomar a monografia ``Meta-História" (1973) e os trabalhos reunidos em ``Trópicos do Discurso" (1978). Este último volume contém 12 ensaios, alguns deles excelentes peças de uma história das idéias bastante tradicional, voltada para autores como Vico, Croce e Foucault, ou para temas como o bom selvagem e o absurdo. Devo, porém, aqui me concentrar na monografia e em mais três ensaios polêmicos, ``O Fardo da História", ``O Texto Histórico como Artefato Literário" e ``As Ficções da Representação Factual", que antecipam ou desenvolvem idéias de ``Meta-História". Foi no primeiro destes ensaios, publicado originalmente em 1966, que White acusou os historiadores de ainda estarem vivendo na metade do século 19, pois seguiam padrões de realismo literário abandonados pelos romancistas há mais de um século, e os desafiou a se valerem ``das novas perspectivas sobre o mundo oferecidas por uma ciência dinâmica e por uma arte igualmente dinâmica".
Em ``Meta-História", o objetivo do autor é oferecer o que denomina de análise ``formalista" dos textos históricos, concentrando-se em clássicos oitocentistas como Jules Michelet, Leopold von Ranke, Alexis de Tocqueville e Jacob Burckhardt -apesar de a introdução de ``Trópicos" dedicar cinco páginas à retórica de ``A Formação da Classe Operária Inglesa", de Edward Thompson.
No seu estudo, White faz quatro afirmações ou asserções principais. Afirma que cada um dos quatro grandes historiadores do século 19 moldou sua narrativa ou enredo com base naqueles de gênero literário consagrado. Assim, Michelet escreveu suas histórias na forma de romance (estória romanesca), Ranke na de comédia, Tocqueville na de tragédia e Burckhardt na de sátira. Afirma ainda que, em cada um desses historiadores, predomina um dos quatro principais tropos retóricos: metáfora em Michelet, metonímia em Ranke, sinédoque em Tocqueville e ironia em Burckhardt. Em terceiro lugar, White afirma que tais enredos e tropos encontram-se associados a quatro modos de explicação, ``os modos do formismo, do organicismo, do mecanicismo e do contextualismo". Por fim, relaciona cada um desses modos a quatro atitudes políticas: anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo, respectivamente. Mais adiante, White faz uma interpretação da obra de quatro filósofos oitocentistas da história: Hegel, Marx, Nietzsche e Croce.
``Meta-História" é um livro brilhante, no sentido literal de ofuscar o leitor e praticamente paralisar a capacidade crítica, pelo menos na primeira leitura. Talvez seja melhor lê-lo como um romance -da forma como Rousseau costumava ler tratados de filosofia. Pois White é mais intuitivo que empírico. Em vez de construir sua argumentação peça por peça, prefere começar pelas conclusões, que ele ilustra, de tempos em tempos, com exemplos concretos.
``Meta-História" é também um livro extremamente original, apesar da natureza dessa originalidade ter sido com frequência mal interpretada. White não foi, com certeza, o primeiro estudioso a se interessar pelos aspectos literários da escrita da história. Mais ou menos na mesma época em que publicou seus primeiros ensaios, no final da década de 60, Jack Hexter, um historiador americano bastante tradicional, havia escrito um artigo sobre ``a retórica da história" para a ``Encyclopaedia of Social Sciences". Um pouco antes, Roland Barthes escrevera sobre as metáforas utilizadas por Michelet. No início do século, um estudioso inglês, Francis Cornford, publicara um livro chamado ``Thucydides Mythistoricus", que compara a narrativa da Guerra do Peloponeso à da tragédia grega. Na Antiguidade, o historiador grego Políbio desqualificara alguns de seus colegas chamando-os de ``trágicos". Os historiadores romanos também tinham consciência do que então se chamava de ``os cosméticos de Clio", os recursos literários da historiografia.
A abordagem que White adota para a retórica da história, vendo-a em termos de elaboração do enredo (``emplotment"), é entretanto bem menos corrente e consiste no desenvolvimento das teorias de dois críticos literários norte-americanos, Kenneth Burke e Northrop Frye. A idéia dos quatro enredos básicos -romance, comédia, tragédia e sátira- é de Frye; original em White, é a ênfase no ``conteúdo da forma" ou, em outras palavras, a associação entre enredos e modos de explicação e de atitudes políticas.
Como deve o historiador reagir às afirmações de White? Minha reação, após um período inicial de deslumbramento, foi e é uma combinação de crítica e de admiração. Primeiramente, acredito que, tanto na monografia quanto nos ensaios aqui discutidos, White mostrou a validade de se examinar a retórica dos escritores de um gênero que os bibliotecários britânicos consideram ``não-ficção". Por se mostrar útil e até indispensável, sua expressão ``elaboração do enredo" (``emplotment") entrou na língua inglesa. White é ainda autor de várias observações penetrantes -não apenas sobre os quatro historiadores que discute em detalhe, como também sobre a obra de Johann Gottfried Herder, por exemplo, ou de Wilhelm von Humboldt.
Para mim, o mais revelador dos capítulos é o dedicado a Ranke, o papa da escrita histórica ``científica" e ``objetiva", no qual White sugere que esse historiador conservador se sentia atraído pela idéia da história enquanto comédia, ou seja, uma história ao longo da qual se resolvem os conflitos e se restaura a harmonia social. Eu gostaria que todos os estudantes de história, independentemente de seus interesses ou especialidades, lessem e relessem esse capítulo com cuidado, de preferência com um livro de Ranke aberto sobre a escrivaninha.

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