São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Herdeiros de Darwin

NELIO BIZZO
LEVANDO DARWIN A SÉRIO

Michael Ruse Tradução: Regina Regis Junqueira Itatiaia, 386 págs. R$ 25,00

Darwin conta com ardorosos defensores, mais de um século após sua morte. Um dos mais famosos é o filósofo Michael Ruse, professor da Universidade de Guelph, no Canadá. Ele é autor de brilhantes tratados sobre filosofia e história do darwinismo, como ``The Darwinian Revolution" (1979), traduzido pela Alianza Editorial, em 1984.
Ruse teve um breve namoro acadêmico com a sociobiologia, assim que ela surgiu, em meados da década de 70, e um primeiro rebento logo em seguida, traduzido poucos anos depois pela Edusp (1984), com o título ``Sociobiologia: Senso ou Contra-Senso" (uma tradução que, convenhamos, não faz muito sentido). Pouco depois, resolveu oficializar a união e, numa verdadeira profissão de fé, escreveu ``Levando Darwin a Sério".
Sua defesa apaixonada do darwinismo levou-o até a Corte Federal de Little Rock, no Arkansas, muito antes de a cidadezinha ficar famosa como berço presidencial norte-americano. Em dezembro de 1981, foi chamado a depor, como perito em evolução, no processo que iria acabar por banir o decreto 590, transformado em lei poucos meses antes pelo governador do estado. A lei obrigava os professores a despender o mesmo tempo de aula com as teorias evolucionistas e o chamado ``criacionismo científico". Assim, prossegue ele no prefácio de ``Levando Darwin a Sério", uma pergunta embaraçosa do advogado dos criacionistas, que insistia em saber de onde brotavam os princípios éticos dos evolucionistas, o obrigou a emitir a seguinte frase: ``Eu intuo os princípios éticos como realidades objetivas".
Confessa que estava apenas enrolando o advogado com seu linguajar filosófico pomposo, mas, no fundo, a pergunta plantou nele uma dúvida: não estaria na hora de edificar uma ética e uma moral darwinistas, tão sólidas e convincentes como as das seitas fundamentalistas, que o provocavam naquele momento?
No entanto, Darwin não está mais aqui para falar o que acha certo ou errado. Restaram seus intérpretes e discípulos. E é em Edward Wilson, considerado o pai da sociobiologia, que Ruse vai procurar seus princípios éticos e morais.
O livro está dividido em três partes. Na primeira, Ruse expõe de forma sucinta algumas das evidências e princípios das teorias evolutivas. O tom didático não prejudica sua narrativa cativante, sempre em primeira pessoa, como se fosse realmente uma conversa entre professor e aluno após o final da aula. A tradução de Regina Regis Junqueira é sóbria, porém muito bem cuidada e consegue reproduzir o clima do livro original, editado pela Basil Blackwell.
Na segunda parte, Ruse discute o que ele chama de epistemologia e ética evolucionistas. A intenção é apresentar as idéias principais do evolucionismo sem os vieses da sociobiologia para, só depois, na terceira parte, discutir uma epistemologia e uma ética darwinistas, isto é, à Wilson dos velhos tempos.
Como não poderia deixar de ser, sua apresentação é tudo menos isenta, como se pode ver na passagem sobre a capacidade de falar dos seres humanos.
Para os sociobiologistas, a seleção natural explica absolutamente tudo, dos aspectos físicos até as características psicológicas, sociais e econômicas de indivíduos e sociedades humanas. Portanto, a fala deveria ser resultado direto da seleção natural, onde um tipo de homens falantes teria substituído outro de homens não-falantes.
Ruse focaliza a atenção do leitor na existência da laringe, que teria ``evoluído inicialmente nos peixes para impedir a entrada de água nos pulmões" (esse arroubo evolucionista não é erro de tradução!). Seja como for, a laringe teria sido moldada pela seleção natural para gerenciar o tráfego de alimentos e ar pelos respectivos dutos, evitando sufocação (a ilustração que ele nos apresenta nesta altura do texto, na pág. 169, é simplesmente patética). Estamos diante de um exemplo evidente de um atributo, o falar, que foi acidentalmente acrescentado ao repertório humano, sem ter sido moldado pela seleção natural. Isso perturba a ortodoxia sociobiológica.
Ruse vai tentar então concluir que os neandertalenses teriam sido homens não-falantes (o Homo alalus, de Haeckel), mas que não se engasgavam porque tinham uma laringe primitiva. Os homens falantes, os nossos vitoriosos ancestrais diretos, se engasgariam com frequência por força de uma laringe mais delicada, mas, entre uma tossida e outra, foram trocando idéias e exterminando um a um nossos quietos primos, primitivos e atarracados. E termina: ``Passaram então a conquistadores absolutos. É dessa forma que funciona a evolução darwiniana". Será mesmo?
Para entender a fala é necessário levar em consideração, mais do que a separação ar-alimento entre traquéia e esôfago, a função das cordas vocais. A seleção natural atuou rigidamente sobre elas, de forma tão clara como talvez em nenhum outro órgão humano. Todo o tônus muscular do tórax depende do retesamento proporcionado pelo aprisionamento do ar nos pulmões, possível graças às cordas vocais. Sem elas, nenhuma mulher consegue terminar um parto. Até o prosaico ato de defecar depende, em boa medida, das cordas vocais. Em outras palavras, 100% dos bebês nascidos nas últimas centenas de milênios que antecederam à cesariana, são provenientes de mães com perfeitas cordas vocais. A seleção natural não poderia ser mais evidente ou exigir melhores condições de trabalho.
A função de produzir sons resulta claramente como secundária, aliás, o esforço físico desgasta as cordas vocais. Se o filósofo canadense ouvisse o Sócrates brasileiro cantando em Ribeirão Preto, entenderia por que sua carreira de solo foi tão breve.
Como Ruse tem dificuldade em manter-se distante da ortodoxia sociobiológica, quando discute simples características físicas, não surpreende a glorificação de Wilson e seus seguidores na última parte do livro, quando trata dos valores humanos supostamente recomendáveis, porque ``adaptativos" ou ``evolutivamente vantajosos". Ele tenta convencer o leitor de que o altruísmo é, em essência, darwinista, uma manifestação individualista, que a natureza funciona como uma grande companhia de seguros, onde todos contribuem com pouco na expectativa de receber muito.
Descobrimos o que devemos e o que não devemos fazer, na óptica de quem entende que os valores humanos brotam da experiência empírica, como ``realidades objetivas", da natureza e não do contexto social mais amplo, no qual estão inseridos aqueles que os pensam e que têm o poder ou a influência intelectual necessária de convencer-nos do bem e do mal.
O livro não deixa de ser recomendável, sob a condição de que os leitores brasileiros sejam mais astutos do que os advogados criacionistas do Arkansas. Afinal, Michael Ruse continua levando Wilson a sério.

Texto Anterior: Um clássico!
Próximo Texto: A gramática da reflexão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.