São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Falta a voz de Billie Holiday em biografia

FERNANDO GABEIRA

Da Equipe de Articulistas V ocê não se importa de subir lá e ir tocando piano até Lady Day subir, se importa? Tenho de ir até lá embaixo, dar uns chutes no estômago dela, amassá-la um pouco e enchê-la de porrada para ela cantar bem.
Quem falava assim de Billie Holiday era seu amante John Levy. Ela sofreu nas suas mãos e nas de quase todos os outros. "Wishing on the Moon, a biografia de 519 páginas escrita por Donald Clarke, é a história desses chutes no estômago. Mas é, surpreendentemente, uma história incompleta.
Primeiro, porque deveria ser lida acompanhada da voz de Billie Holiday. Todo o lixo que ela viveu era reciclado pelo seu canto. Porradas, prisões, droga pesada, tudo isso caía na sua usina e saía em forma de vibratos, interpretações históricas e uma atração sexual que desafia as palavras:
"Eu já cheguei a ver 27 brigas numa semana quando Lady estava por aqui. Ela realmente incita as pessoas. Não acontece com Ella ou Dinah ou Sarah ou Della.
Isso é uma confissão tranquila de um dono de bar, que diz mais:
"Billie não faz nada. Apenas canta `Love for Sale'. Ou outra canção qualquer. Siga-me e suba as escadas. Um homem numa mesa de quatro pessoas começa a olhar para ela. A mulher dele bebeu um pouco demais e começa a reparar no modo como o marido olha para Lady. O gelo começa a chacoalhar, as bolsas começam a bater, as cadeiras começam a ranger e as pessoas começam a se espalhar.
Siga-me e suba as escadas. Um simples verso cantado por uma negra que amava todas as nuances da voz humana ("sou louca por um fá sustenido) era capaz de botar abaixo uma boate, nos anos em que a própria lei seca tornava os bares perigosos.
Ela ainda se chamava Eleonora, vivia em sua cidade natal, Baltimore, era pouco mais que uma adolescente, mas já cantava, fumava seus baseados fininhos trazidos por marinheiros e se prostituía para viver:
"Com meus fregueses brancos de sempre era moleza... Quando eles vinham me ver era `wham bang' (eu traduziria por `vupt e pronto', mas no livro a expressão foi mantida em inglês), eles me davam o dinheiro e se iam. Eu faturava toda a grana de que precisava. Mas os negros mantinham a gente acordada a noite inteira, com aquele papo de `está bom, baby?', `você está a fim de ser minha patroa?'

Elevador de carga
Há milhares de histórias de subtramas e enredos na vida de Billie, que um dia se transformou em Lady Day, apelido que lhe deu Lester Young, grande amigo de quase toda a vida.
Por sua trajetória, temos a idéia do que era o racismo em Baltimore e acompanhamos o drama de uma cantora negra naquele tempo.
No auge da carreira, quando viajava com a banda pelo interior dos Estados Unidos, era obrigada a dormir em hotéis de separados e, em Nova York, chegou a ser convidada a entrar pelo elevador de carga, pois não queriam que hóspedes brancos a vissem.
Sua relação com a droga mostra o que era Nova York no período da lei seca, traços de uma atmosfera nada estranha a nossas grandes cidades:
"Mesmo quando se pagava aos policiais, relata Arnold Shaw, "às vezes se levava uma dura. Então a gente tinha que soltar algum para que os agentes mudassem seus depoimentos diante do delegado. Para ter certeza de que o delegado deixaria isso acontecer, tinha que soltar algum para ele também. Aquela época era uma loucura.
Rejeitada pelo pai, Clarence Holiday, que também era músico, Billie conseguiu ser como ele aparece nessa descrição do baterista Jimmy Crawford:
"Clarence era um homem do ritmo, tinha aquele pé esquerdo marcando, era assim mesmo, ele fazia tudo e estava suingando.
Talvez essa frase de Crawford defina bem o destino da menina de Clarence. Ela fazia tudo e estava suingando. Junto com ela, uma extraordinária geração de músicos negros, anteriores à indústria do disco, mas que maravilharam as noites das grandes cidades americanas com "jam sessions, quase todas perdidas na eternidade do momento.

Distância higiênica
A biografia de Billie Holiday, escrita por um dos autores da ``Enciclopédia Penguin de Música Popular", é bastante precisa nos dados técnicos de cada uma das gravações, avalia seções rítmicas e arranjos, compara gravações diferentes e, por isso, fica um pouco incompleta se não estamos com o som ligado.
O que mais me deixou surpreso foi a falta de curiosidade do autor sobre a sensualidade de Billie, a incapacidade de formular uma hipótese sobre sua vontade de apanhar, a neutralidade em relação ao bissexualismo de Lady.
O livro é apoiado em depoimentos que se sucedem. Nada contra. Mas preferia uma reconstrução da vida de Lady Day. Uma história contada a partir de seu ponto de vista.
Sentimos uma vida rica e sofrida, ansiamos por estar ao seu lado, mas a história nos frustra, nos mantém a uma distância higiênica, esterilizada.
Temo, finalmente, parecer aqueles policiais que a prenderam por porte de drogas no leito do hospital e ficaram lá olhando para ela. Jamais veriam alguma coisa importante, a não ser que ela cantasse. Era linda, louca, livre.
O baterista John Levy, que tinha o mesmo nome do amante de Billie, sintetizou o que sentia:
"Ela não era uma cantora no sentido de Nancy Wilson ou mesmo de Sarah ou Ella -era uma estilista completa. Quando se ouvia Billie cantar, se sentia que ela estava vivendo aquela experiência e que estava contando sua história.
Quando se escreve uma biografia de Billie Holiday é preciso ter essa idéia na cabeça. Temo que Donald Clarke não tenha incorporado essa força. Era preciso que ele também pedisse à Lua algo maior que todos os dias. Era preciso, enfim, "wish on the moon, como a canção que trouxe a Billie um de seus primeiros grandes sucessos.
Por acaso, a letra é de Dorothy Parker, que, como Billie Holiday, merecia a advertência de um amigo: "Se você continuar a cometer suicídio, vai acabar prejudicando sua saúde.
Billie Holiday continuou. E às vezes hesitamos em perdoá-la por isso.

Livro: Wishing on the Moon, a Vida e o Tempo de Billie Holiday (519 páginas)
Autor: Donald Clarke
Tradução: Jamari França
Lançamento: ed. José Olympio
Preço: R$ 59

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