São Paulo, quinta-feira, 6 de julho de 1995
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Cadê o morto que estava aqui?

MOACYR SCLIAR

- Desculpe, mas o senhor trabalha aqui no aeroporto? Trabalha? Então o senhor poderia me ajudar.
- Estou aqui para isso.
- Ótimo. Seguinte: Eu perdi um cadáver...
- Um o quê?
- Um cadáver. O corpo de um parente meu. Ia ser sepultado na terra natal dele. Último desejo, o senhor sabe como é. E aí sumiu. Estava aqui agorinha mesmo -e sumiu.
- Bom, acontece. Mas não adianta a gente ficar aqui se lamentando, adianta? Vamos ao que interessa: como era o cadáver? Digo, que aparência tinha?
- Aparência? Era um homem de idade. De idade, mas bem conservado. Pelo menos até o dia em que morreu. Usava óculos, mas só para ler. Estava de terno, sapato novo... O senhor conhece essa tradição: morto ganha sapato novo. Agora, tem uma coisa...
- Que coisa?
- Não sei se adianta eu descrever o meu parente. Por uma razão muito simples: ele estava dentro de um caixão. Sumiu com caixão e tudo.
- Nesse caso, descreva o caixão.
- Ah, era um belo caixão. O melhor da funerária, ouso dizer. A nossa família não tem muitos recursos, mas nessas coisas de caixão não economizamos: se o parente tem de ser enterrado, que seja enterrado com estilo. Teve quem sugerisse que o levássemos numa bolsa plástica, dessas grandes, com zíper. Mas nós recusamos. Seria um desrespeito à memória de nosso parente, homem finíssimo. Pobre, sim -fazendeiro arruinado-, mas finíssimo. Em matéria de caixão tinha de ser madeira de lei. Mas me diga uma coisa: será que eu lhe descrevendo o caixão o senhor encontra?
- Isso eu não sei. Para lhe dizer a verdade, não sei. O caixão pode ter sumido.
- Mas como é que some um caixão?
- Por engano. As pessoas se enganam muito com bagagem. Não há trocas de malas? Pois há trocas de caixão também. Acontece.
- Quer dizer que o nosso parente sumiu? Quer dizer que nunca mais vamos vê-lo?
- Bem, se os senhores iam enterrá-lo, ele sumiria de qualquer jeito. Mas eu não seria tão pessimista: acho que esse caixão vai aparecer, sim. Talvez não aqui neste aeroporto. Talvez em outro. Já aconteceu: um defunto que ia ser embarcado aqui apareceu sabe onde? Em Moscou. Aliás, quase cria um problema político. Porque eles abriram o caixão, sabe? E levaram um susto: o morto era igualzinho ao Lênin. Aí começaram a dizer que era coisa do Ieltsin: para acabar de vez com o comunismo, queria se livrar do cadáver do Lênin. Foi uma confusão. Muita gente revoltada, falando em trazer de volta o antigo regime. Já pensou? O comunismo de volta, já pensou? O seu problema é muito mais simples, meu caro.
Fazendeiro arruinado a gente acha logo. Desde que não seja parecido com o Lênin, claro.

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