São Paulo, quinta-feira, 6 de julho de 1995
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Deus e dinheiro

OTAVIO FRIAS FILHO

Responda depressa: o que existe em comum entre o neobilionário Bill Gates, o ``neoliberal" FHC e os neopentecostais? A resposta é a adesão aos valores do livre-mercado, agora que a mercadoria parece cumprir seu destino final, ampliando seus limites até abarcar a atividade humana quase totalmente.
Entre o Ford da informática e o presidente-sociólogo a diferença é de tom. Gates é um entusiasta algo simplório, aparentemente alheio ao mundo de exclusão que o culto à eficiência está gerando. Em artigo que saiu ontem, ele tem a cara-de-pau de dizer que ``os empregados migram das empresas perdedoras para as vencedoras".
O melhor que se pode pensar sobre a decantada inteligência do presidente é que ele sabe dos riscos da decisão que tomou, em especial num país onde os mais pobres não dispõem das redes de segurança dos países ricos, mas que para ele nem se trata de decisão, trata-se do inevitável.
Na sua linha de raciocínio, é melhor correr o risco de aumentar a exclusão social agora, na expectativa de que a parte rica da sociedade, modernizada, produza excedentes capazes de em seguida financiar a recuperação da parte pobre, do que correr o risco de excluir, da dinâmica internacional, o país por inteiro.
E os neopentecostais? Uma tese apresentada na USP mostra que eles perfilham uma espécie de teologia da prosperidade, cada vez mais voltada para o sucesso terreno e para valorizar bens de consumo. Parecem bem afinados com o espírito do tempo e daí, talvez, a razão do crescimento dessas seitas.
Essa atitude não é inédita no protestantismo. Os primeiros protestantes acreditavam na predestinação, ou seja, na tese não somente de que apenas uma ínfima minoria seria salva (``muitos serão chamados, poucos serão escolhidos"), mas de que cada destino está predeterminado desde sempre, embora oculto para nós.
O católico se salva pela virtude, pelo arrependimento, pela penitência; o protestante vive às escuras, sem saber se já está salvo ou condenado, buscando em cada momento vislumbrar indícios de que a graça divina recaiu sobre ele. Por isso a atmosfera urgente, apoplética dos cultos, em oposição à pasmaceira das missas.
A consequência prática é que o protestante está isolado nesta vida. Não conta com a facilidade de acesso à vida eterna que beneficia o católico e tem de levar a sério as palavras desconcertantes que Mateus atribui a Jesus: ``Porque àquele que tem, se dará em abundância; mas àquele que não tem, até o que tem lhe será tirado" (Mt 13;12).
No seu texto mais famoso, Max Weber definiu assim a relação entre fé e capitalismo: vendo na riqueza sinais exteriores da graça divina, os protestantes estabeleceram uma violenta disciplina moral em que todas as energias são canalizadas para a acumulação de bens.
Os neopentecostais parecem tão-somente atualizar essa doutrina, acrescentando algumas pitadas de consumismo na receita. Há um longo caminho entre Lutero e Bill Gates (que deve ser batista); esse caminho é a marcha triunfal da mercadoria. Sendo supostamente ateu, FHC está imune, do ponto de vista espiritual, mas na prática é levado junto.

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