São Paulo, quinta-feira, 6 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Época dos burros

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Gostei de ouvir o presidente da República chamar de burros aqueles que não concordam com ele. Como tenho o hábito de, todas as noites, ler alguma coisa da Bíblia, na versão de São Jerônimo (a mais próxima dos originais hebraico, aramaico e grego), encontrei uma bela frase que explica a situação do Brasil: ``stultorum numerus est infinitus". Tradução aproximada: o número de imbecis é infinito. Deve ser, mais ou menos, o que o presidente está pensando dos adversários.
Por espantosa coincidência, é também o que os adversários estão pensando dos neoliberais que pululam no governo, cujo eixo é o próprio presidente, eleito por 34 milhões de... quê? O texto sagrado sugere que onde há maioria há burrice. No conflito entre o sagrado e o profano, costumo ficar com o profano, mas desta vez acho que vou concordar com as Santas Escrituras e com o Nelson Rodrigues, que disse coisa parecida a respeito da unanimidade -que é o produto final do ``infinitus numerus". Os institutos de pesquisa deviam levar essa verdade sagrada em consideração.
São perigosas as certezas. Santo Agostinho dizia que só acreditava nas coisas ``tremendo". E jogou a culpa de sua fé no absurdo -era um gênio e decididamente não seria um neoliberal se hoje vivesse. Seria um burro a mais na contabilidade de FHC.
Os intelectuais que cercam o presidente e o próprio, que é o mais entusiasmado consigo mesmo, já tiveram outras certezas, mas acharam complicado chegar ao poder com elas. O caso do ministro da Cultura, por exemplo, é sintomático. Sumiu de circulação. Assim como há funcionários-fantasmas, há ministros-fantasmas. Burros e fantasmas -o Brasil é um país assombroso e assombrado.
Compreende-se o irritado desabafo do presidente. Ele e seus correligionários todos os dias avisam e lamentam que o Brasil não é o México ainda. Lá, 0,3% da população detém 56% da renda nacional. O Brasil ainda não chegou lá. FHC desindexou os salários e indexou o resto. Quem não entendeu isso só pode ser burro.

Texto Anterior: Mais dinheiro
Próximo Texto: Deus e dinheiro
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.