São Paulo, quinta-feira, 6 de julho de 1995
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Ainda o IPTU de 1992

ODYR PORTO

Um ilustre jurista, na edição de 28 de junho último deste prestigioso jornal, escrevendo a respeito do IPTU de 1992, aludiu à liminar que concedi quando presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, sustando provisoriamente a eficácia de lei que instituira novo critério para o cálculo daquele tributo, questionado em inúmeras demandas judiciais, até julgamento final da questão.
Reputando meu ato um ``absurdo do ponto de vista jurídico", insinuou que aquela decisão estaria viciada por suspeição, dado que prolatada por quem depois tornou-se secretário de Estado num governo hostil à agremiação política da então prefeita Erundina. E sugeriu ter o malsinado decreto judicial impedido ``obras de relevante interesse social". Em resumo, teria eu arquitetado uma trama política para retirar recursos da administração petista, por meio de uma decisão disparatada.
As conclusões do articulista desconsideraram uma informação que não poderia se esquecida. A referida decisão foi confirmada, referendada, não apenas pelo Plenário do Tribunal de Justiça de São Paulo, por expressiva maioria (23 a 1), como também pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, ainda por maioria significativa.
Não me consta que decisões ``absurdas do ponto de vista jurídico" tenham o endosso desses tribunais. Nem é verdade que a Suprema Corte, na oportunidade, manteve-se omissa. Basta ler as notas daquele julgamento, demoradamente fundamentado, para se inferir o contrário. Supondo-se, para argumentar, que o denunciado conluio tivesse existido, teriam, então, protagonizado a maquinação inclusive os integrantes do Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, o que, no mínimo, seria supor uma ingenuidade.
Ademais, liminar, como a questionada, tem pressupostos, então induvidosamente presentes inconfundíveis com os de uma decisão final, de mérito. Isso é elementar em direito. A ressalva, aliás, constou, mesmo desnecessariamente, da minha decisão cautelar. Assegurava-se, face a plausibilidade do direito invocado pelos contribuintes, à iminência de prejuízos de demorada reparação e à ocorrência de decisões de primeira instância conflitantes, a situação anterior à vigência da lei contestada, até decisão final de mérito, ou seja, até que a Justiça esclarecesse quem tinha razão.
Nada de estranho, portanto, que a decisão de mérito, ainda sujeita a recurso, tenha agora afirmado a improcedência daquele direito antes considerado razoável pelo mesmo órgão colegiado do julgamento preambular. O decisório mais recente em nada desacreditou a precedente liminar. Jamais, exceto numa visão comprometida pela paixão partidária, se poderia extrair desses sucessivos julgamentos a prova da imaginosa conspiração contra o governo do Partido dos Trabalhadores.
Nem sequer a circunstância de posteriormente ter assumido as secretarias da Segurança Pública e da Justiça e Defesa da Cidadania estaria demonstrando o acenado ajuste político. Quem auxilia a execução de um plano de governo não adere, necessariamente, às posições político-partidárias do chefe desse governo. Não foi outra a tese sustentada pela prefeita Erundina, perante o seu partido, quando convidada a ocupar uma secretaria num governo que se dizia em descompasso com sua agremiação partidária. Aqui, no entanto, por conveniência do momento, a versão é outra.
Exerci as mencionadas funções na administração pública estadual com o mesmo propósito de servir que me elegeu presidente das Associações dos Magistrados paulistas e brasileiros e presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, e, sobretudo, que me inspirou como magistrado. Mudei às vezes de trincheira, jamais, porém, renunciei aos meus ideais. Todos que me conhecem sabem disso. Esse é um patrimônio moral irrenunciável, como, certamente, o tem o ilustre articulista citado inicialmente.
Há, no convívio democrático, aqueles que não suportam a presença dos que pensam diferentemente, esquecidos de que a convivência dos opostos é fundamental a um regime de liberdade. Tal posicionamento autoritário, essa intolerância que identifica períodos históricos de triste recordação, como os do nazismo e do stalinismo, tem ultimamente fustigado a Justiça.
As sentenças judiciais apenas são poupadas de críticas impiedosas quando favorecem determinados grupos sociais. Rui Barbosa já a seu tempo prevenia contra essas demasias, ``que apenas toleram leis e tribunais, enquanto os tribunais e a lei estão de acordo com as veleidades populares da ocasião". Creio que deveríamos refletir sobre esses desvios de conduta, que podem enfraquecer não somente o Poder Judiciário, mas a própria democracia.
Admito que equívocos possa ter cometido, nos quase 40 anos em que fui juiz. Penso, porém, que a possibilidade desse erro é quase inexpressiva quando uma sentença é confirmada, em grau de recurso, pelo voto de 23 dos 24 desembargadores que reexaminaram a questão, e, além disso, ainda recebe o beneplácito do Supremo Tribunal Federal.
Erros, porém, são inerentes à natureza humana. Eles podem ter sido tanto de minhas decisões como daqueles que as impugnaram sem sucesso. Há que se atentar, com natural humildade, para isso. Ninguém é dono exclusivo da verdade, que frequentemente estará na resultante desses desencontros de idéias. O que importa é estar tranquilo consigo mesmo, como estou ao final de minha carreira judicante.
Como um do povo, sempre desejei ter governos voltados para a satisfação dos anseios populares. Essa aspiração, entretanto, não poderia ser atendida por leis razoavelmente inquinadas de inconstitucionais, instituindo tributos insuportáveis. Aqueles fins não poderiam justificar esses meios. Assim pensava quando concedi a liminar questionada e ainda penso, como ex-juiz, como jurista, como advogado e como cidadão comum. O mais é paixão política, que respeito, mas que não discuto.

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