São Paulo, quinta-feira, 6 de julho de 1995
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Outro mergulho na vergonha

CARLOS ALBERTO IDOETA

A Anistia Internacional lança seu novo relatório anual. Cobre 151 países. O leitor experimenta a sensação de ``déjà vu". Medo, dor e morte pela ação ou pela omissão de funcionários de governos pagos para proteger os governados.
Nossos números são conservadores. A natureza e a inter-relação das violações tornam impossível determinar os totais exatos de vítimas. Constatamos presos de consciência em 78 países. Dezenas de milhares de detidos por motivos políticos em 70 países, ou vítimas de farsas judiciárias em 33 países.
Quase mil seres humanos ``desapareceram" em 29 países, mais de mil morreram em consequência de torturas ou de condições desumanas de prisão. Em 22 países, os parentes dos ``desaparecidos" continuam em busca da satisfação devida. Pelo menos 2.500 presos foram legalmente enforcados, fuzilados, envenenados ou eletrocutados em 33 países. Incontáveis execuções extrajudiciais eliminaram membros da oposição ou de minorias em 54 países. Grupos de oposição armada fizeram reféns, feriram, torturaram e mataram em 36 países.
Em setembro haverá a conferência da ONU sobre a mulher, em Pequim. Enquanto a hipocrisia oficial de novo se evidencia na preparação do evento, as mulheres do mundo provam intimidações, estupros, mutilações e execuções nas mãos de covardes armados. Suas vozes não são ouvidas, suas tragédias individuais se perdem entre as tantas.
Torturadores e assassinos, autorizados ou tolerados, desafiam impunemente as leis e convenções nacionais e internacionais, afrontam a dignidade e roubam a vida humana. Apesar dos solenes compromissos assumidos nos salões de Genebra, Nova York e Viena.
Na América Latina, o paradeiro dos ``desaparecidos" ainda causa comoção nas casernas e nos palácios. Os tribunais colombianos de investigação de crimes militares insistem em não ajuizar ninguém. A tortura corre solta no México, nem os índios escapam. Os civis peruanos podem padecer nas mãos do governo ou dos luminosos do ``Sendero".
As páginas sobre o Brasil cuidam da tortura e dos maus-tratos nas prisões e delegacias de polícia. Das centenas de execuções extrajudiciais pela polícia e pelos esquadrões. Do envolvimento impune nos esquadrões de policiais civis e militares de vários Estados, admitido pelas autoridades, e da lentidão nas investigações. Das ameaças de morte a procuradores que querem investigar violações, a jornalistas, militantes e membros da igreja. Do relatório ``Além da desesperança", em que a Anistia, entre outras coisas, propôs ao governo brasileiro reformas profundas nas polícias e no Judiciário e medidas efetivas de proteção às testemunhas.
Em Cuba, resistem uns 600 presos de consciência, e os militantes de oposição ou de direitos humanos recebem do governo intimidação, detenção e julgamento injusto. Dos EUA, onde a inútil pena de morte prefere os pobres e as minorias, chegam denúncias de brutalidade policial e maus-tratos nas prisões.
Em Ruanda, o ataque genocida à minoria tutsi já matou mais de 1 milhão e expulsou do país outro milhão. No vizinho Burundi, milhares foram assassinados por motivos políticos. Em uma prisão de Camarões, 150 morreram por falta de comida ou cuidados médicos.
O governo chinês tortura e mata em escala maciça: 1.791 as execuções e 2.496 as sentenças de morte conhecidas no ano passado. Entre os presos de consciência, crianças, monges e freiras budistas que defendem pacificamente a independência do seu Tibete.
Em 29 países europeus -Alemanha, Espanha, França e Suíça entre eles- foram registrados casos de tortura e maus-tratos. A ação policial aparenta motivação racial. A Anistia denunciou procedimentos de deportação desumanos e degradantes no Reino Unido. Grupos armados como ``ETA" e ``IRA" foram responsáveis por dezenas de mortos e feridos.
Foi muito difícil acompanhar as violações na Bósnia-Herzegovina, com até quatro forças armadas em conflito e tantos registros de ataques a residências, prisões ilegais, torturas, execuções e ``desaparecimentos", de mulheres e crianças inclusive. As tropas russas cometeram graves abusos na autoproclamada República da Tchetchênia, e não se indiciam os responsáveis lá também.
Na Argélia, os civis estão frequentemente entre as vítimas do conflito entre o governo e os grupos islâmicos. No Iraque e na Síria, contam-se aos milhares os presos de consciência e políticos, e sucedem-se as denúncias de execuções extrajudiciais. Em Israel e nos territórios ocupados, continuaram as violações cometidas por israelenses e palestinos mais de um ano depois do acordo de paz. Centenas de muçulmanos de credo sunita foram presos por suas atividades políticas ou religiosas na Arábia Saudita.
A jurisdição primária da proteção e promoção dos direitos humanos é dos ordenamentos jurídicos internos, mas neles pode não se esgotar a ação. A responsabilidade internacional pela defesa de cada indivíduo na sua singularidade continua a nos cobrar a denúncia imparcial e a pressão independente. Ante o drama dos curdos, François Mitterrand lembrava que ``o dever de não-ingerência termina onde nasce o risco da não-assistência".
Cada vez menos podemos pretextar ignorância dos fatos teimosos, do hiato entre retórica e prática e da lentidão das engrenagens oficiais na perseguição das aspirações comuns à espécie humana. Cada vez mais a expressão da indignação ante o inaceitável e o agir conjunto, base do poder, poderão erradicar o medo e a miséria do planeta.

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