São Paulo, sábado, 8 de julho de 1995
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Niemeyer dá ao Rio um passado novo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Caso o Brasil futuro, como o de hoje, ainda acorde carente de notícias alvissareiras, resolvo preservar uma, aqui. Acabo de estar presente à reunião semanal do Conselho Estadual de Cultura, e nela o mais ilustre dos conselheiros, Oscar Niemeyer, que raramente dá algum palpite, pediu a palavra.
Disse -falando baixo, e o microfone tratou de pegar cada sílaba, feito mão de semeador com medo de perder algum grão- que queria oferecer à cidade do Rio um planozinho, um projeto de regeneração da praça Quinze de Novembro, onde bate o coração do mais velho Rio. (Ninguém pediu nenhum projeto ao Oscar. Ele sentou e fez: eis a beleza do gesto.)
Na praça está, ainda lindo de morrer, o Paço Imperial. Além dele estão a igreja do Carmo, a antiga Catedral Metropolitana, tão mais bela que o horror asteca da catedral de hoje, o arco do Teles, dos tempos de D. João Charuto, mas onde morou Carmen Miranda ao chegar bebezinha de Portugal, e o chafariz de dona Maria 1ª, obra de mestre Valentim.
Essa tetéia de largo à beira-mar anda desfigurada, feiosa, pensou Oscar passando por lá outro dia. Olhou a Quinze como um Pigmalião que descobrisse, já velha, a primeira namorada que teve e resolveu restituir-lhe a graça dos 16 anos. Ao conselho, Oscar expôs, inclusive com desenhos feitos na hora, seu projeto de ressurreição e uma pintura, que trouxe pronta de casa, da nova praça Quinze, isto é, da antiga, revitalizada, e da parte nova, que vai até o mar, como antigamente.
Na sua exposição, Oscar, que é o menos frasista dos brasileiros, disse essa coisa perturbadora: ``Precisamos criar hoje o passado de amanhã". A nova praça Quinze avança mar adentro com levíssimas construções baixas e alvas, de um moderno tão doce e absoluto que parece contemporânea do Paço Imperial. Mistério oscarino que, confesso, eu não saberia como elucidar.
Pesadelos do ano 2000
Quem, como eu, já foi redator-chefe (``editor", como se diz agora) de jornal, conserva pesadelos na memória. Outro dia -em gozo de férias, a cabeça meio vazia- me surpreendi perguntando a mim mesmo, aflito, que tema escolheria para o ``Mais!", por exemplo, na virada do milênio.
A virada de cem anos já causa problemas sérios de balanço e julgamento. Que foi o século 20, que se arrasta agora, reumático, pelos seus derradeiros cinco anos? Foi o século de quê? Do fim dos nacionalismos? Do começo e fim do império comunista? Do retorno, graças ao nazismo, do bárbaro que continua vivo dentro de nós? Ou, para simplificar tolamente as coisas, mas para aliviar o ``editor", do celebrado fim-da-História?
No entanto, ainda que esse pobre consolo aguentasse até a chegada do ano 2000, teria ido longe demais. E nunca, jamais, satisfaria alguém como símbolo do milênio inteiro. Aliás, é inútil procurar a resposta. Nossa pobre cabeça simplesmente recusa considerar a massa de tempo do milênio.
Eu aconselharia ao ``editor" a escolha meio arbitrária de uns cinco temas milenares, e o apelo, em seguida, para um copo de jogo e os dados. Ou simplesmente decretaria dois temas, como o racismo e o homossexualismo, digamos, e pronto. Aliás, mesmo diante de temas tão gerais, é bom termos sempre em mente que o que acontece no mundo em geral acontece meio diferente no Brasil.
Nosso racismo, por exemplo, não tem nada como o pão-pão, queijo-queijo dos Estados Unidos ou da África do Sul. Temos o racismo, mas nos faltam os brancos. Somos pretos, de um lado, e do outro somos mulatos, ou caboclos, de forma declarada ou não.
Quanto à questão homossexual, ela ainda está tão primitiva entre nós que inventamos para ela um lado histórico-heróico, quando o Primeiro Mundo já mergulhou inteiramente no lado genético.
Nossos defensores do homossexualismo trazem para suas fileiras mitos machões como Zumbi e Lampião, enquanto nos Estados Unidos rigorosas pesquisas de cientistas mergulham cada vez mais no laboratório, para buscar a prova de que a atração pelo mesmo sexo vem da estrutura e não da psicologia pervertida ou da pura perversão sexual, como se achava que fosse o caso no fim do século passado, quando foi processado e preso Oscar Wilde.
E, vejam só, para tomar como exemplo um caso como o de Wilde: a Inglaterra, agora, para reconhecer que só por muito preconceito tinha posto em cana o pobre Wilde, concedeu simplesmente à sua memória um pequeno vitral no canto em que jazem os poetas mortos, na Abadia de Westminster. Impediu, com essa singela homenagem, que Wilde, que morreu no ano de 1900, acabasse virando mártir homossexual do século, para nem falar no milênio.
Porque, aqui entre nós, não fosse a discrição e a fúnebre elegância da cerimônia da recepção do prisioneiro de Reading entre os grandes de Westminster, Wilde podia acabar como uma espécie de padroeiro mundial dos homossexuais. E, igualmente aqui entre nós, o escândalo que ele armou ao tempo do processo assustou até os cavalos de Londres.
Foi a senhora Patrick Campbell, a atriz para quem Bernard Shaw escreveu ``Pigmalião", quem melhor descreveu a Inglaterra do seu tempo dizendo que as pessoas podiam fazer o que bem entendessem no quarto de dormir, mas nada de chocante no meio da rua, nada ``que assuste os cavalos".
Os paradoxos, as graçolas, os perfeitos epigramas de Wilde durante o processo que moveu o marquês que era pai do seu namorado puseram num alarido só todas as estrebarias de Londres. Tal como Hugh Grant pôs outro dia em alarido as (inexistentes) cavalariças do Sunset Boulevard.
Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso, dizia-se quando eu era pequeno. Quem iria medir, num suplemento dedicado ao homossexualismo secular, ou milenar, as figuras de Wilde e as de Zumbi ou Lampião? A única contribuição original e brasileira que o ``editor" poderia incluir em sua edição especial seria a de Fernando Gabeira, em ``O que É Isso, Companheiro?", quando o autor confessa candidamente o súbito impulso de desejo que sente por outro preso na Casa de Detenção.
Mas por que será que resolvi me afligir com os problemas do ``editor", do redator-chefe que, com a graça do Senhor, deixei de ser há coisa de um século, ou talvez milênio?

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