São Paulo, sábado, 8 de julho de 1995
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Água na fervura

A construção de regras de convivência civilizada sempre foi, e será, vítima de um paradoxo fundamental: segui-las exige disciplina, mas, se a legitimação da regra exigir disciplina demais, torna-se arbítrio ou dá margem a arbitrariedades.
Construir regras legítimas é portanto sinônimo de construir instituições capazes de estabelecer mediações e espaços de negociação.
É nesse contexto que se poderá entender a insistência dos diplomatas brasileiros quanto ao cumprimento dos acordos do Mercosul e o seu repúdio velado à ruptura unilateral dos compromissos de Ouro Preto. É em boa medida graças à insistência dos diplomatas de lado a lado que se conseguiu contornar uma crise mais grave entre Brasil e Argentina, no mês passado.
Reconhecido o primado da diplomacia na esfera das relações internacionais civilizadas, entretanto, é preciso estar atento às inúmeras falhas de forma e conteúdo que vêm caracterizando o processo de constituição do Mercosul.
Em primeiro lugar, falta exatamente a construção, não das regras e normas, mas das instituições capazes de legitimar e oferecer abrigo às renegociações naturais em projetos de integração econômica.
Sem foros supranacionais as divergências serão sempre, imediatamente, conflitos de governo -quando em verdade está em jogo não este ou aquele governo, esta ou aquela vaidade, mas um cronograma que atravessa governos para mais aproximar países e gerações.
Mais ainda, não basta que existam normas e instituições de mediação. É fundamental garantir, permanentemente, que o conteúdo das decisões esteja amparado não na clarividência de um punhado de diplomatas bem-intencionados, mas em sólidas relações e detalhadas negociações com os interesses econômicos e sociais afetados pelos acordos internacionais.
O exemplo europeu continua sendo a melhor referência para os aspectos políticos da integração. Lá houve plebiscitos para fazer da integração não uma engenharia de gabinetes, mas uma união democraticamente legitimada.
Nessa perspectiva, a aceitação de um acordo que previa um regime automotriz para a Argentina sem nada simétrico para o Brasil foi um erro que deve ser corrigido. Afinal, não se trata apenas de quanto se importa de carros, hoje, de parte a parte. Estão em jogo decisões de investimento de longo prazo que as multinacionais do setor tomarão levando em conta justamente essas regras que, por enquanto, distam enormemente de um consenso.
A visita do presidente Fernando Henrique Cardoso à Argentina, para a posse do reeleito Carlos Menem, ajuda a colocar água na fervura. Mas importa lembrar que, por baixo, o fogo continua bem aceso.

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