São Paulo, sábado, 8 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jornal e literatura

CARLOS HEITOR CONY

Andei lendo em diagonal alguns artigos sobre a descoberta de recente pesquisador literário a propósito de Euclides da Cunha. Como a pólvora e a roda, descobre-se muito sobre coisas e assuntos já descobertos. No caso de ``Os Sertões", a revelação foi primária: Euclides teria aproveitado fontes diversas para compor a sua epopéia.
O autor da descoberta talvez entenda de literatura, mas pouco de jornalismo. E o livro de Euclides é antes de mais nada um produto jornalístico. Ele não precisaria testemunhar fisicamente todos os eventos narrados. Teria de se valer de fontes, resenhas oficiais, depoimentos tidos e havidos entre as partes e, obviamente, relatos paralelos ou anteriores à redação de sua obra.
É o trivial do jornalismo. O importante é que, como obra literária, ``Os Sertões" saiu do escaninho original, a imprensa, e se instalou em outra gaveta, a da literatura. Para dar exemplos banais de como a coisa funciona, lembraria a produção jornalística de autores mais recentes, como Hemingway, Capote e Graham Greene, que fizeram obras literárias a partir de acontecimentos também cobertos pela imprensa. Não se pode acusar Graham Greene de plagiário pelo fato de ter aproveitado recortes de jornais de Cuba, nem Truman Capote por ter copiado trechos de um processo policial. A arquitetura literária que eles usaram nada tem a ver com a carpintaria policial, judicial ou jornalística em que se basearam.
Como se trata de um autor da importância de Euclides da Cunha, poderia citar exemplo mais sólido. Para escrever ``Guerra e Paz", Tolstoi se utilizou de relatos sobre a campanha de Napoleão na Rússia. Muitos desses relatos já estavam impressos em jornais e livros. Tolstoi também aproveitou resenhas e relatórios militares.
A descrição das batalhas e do clima da campanha, em que até Napoleão eventualmente participa do diálogo, foi baseada em relatos de autores franceses, russos e alemães. Tanto a epopéia russa como a brasileira terão de ser vistas como monumentos literários. E jamais como furos jornalísticos.

Texto Anterior: Desconfiança de um metalúrgico
Próximo Texto: Comla 5
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.