São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Fazer as reformas para combater a pobreza

ANTONIO KANDIR

Já disse que o Brasil é um país de contrastes. Não são apenas contrastes entre classes e grupos de renda e status desiguais. São também contrastes entre diferentes épocas, que coexistem na realidade nacional.
De fato, ao mesmo tempo em que, em aspectos fundamentais do Estado e de suas relações com o sistema e os agentes econômicos, estamos dando o passo definitivo para superar a "Era Vargas", ainda não superamos por inteiro a "Era Colonial".
Os resquícios da "Era Colonial" são evidentes. Não são apenas marcas profundas deixadas na estrutura social do país, são também resquícios vivos, quase intactos, como o provam as denúncias reiteradas de trabalho escravo em várias regiões do país (não faz 20 dias, a Polícia Federal libertou 50 trabalhadores mantidos em regime de escravidão numa fazenda do Mato Grosso do Sul, Estado que tem um agrobusiness moderno e internacionalizado).
O fato de que no Brasil a modernização carregue em si problemas vindos do passado distante coloca as forças políticas comprometidas com a mudança social diante de exigências novas, aparentemente contraditórias. Ao mesmo tempo, tendo de dar respostas aos desafios do futuro e aos desafios não resolvidos do passado. Presa a aparências e rótulos de pouco significado real, parte dessas forças tem-se condenado ao retraimento, parte ao imobilismo e ao desastre político.
Em ambos os casos, em graus certamente diversos, está a dificuldade de perceber que as reformas do Estado e da economia não conflitam necessariamente com a diminuição importante e continuada das desigualdades sociais, tampouco com a superação de atrasos seculares da sociedade brasileira. Antes o contrário: são condição imprescindível para que a vontade política de diminuir as desigualdades sociais e superar atrasos seculares possa passar efetivamente da intenção ao fato concreto.
Em primeiro lugar, porque sem as reformas não há como consolidar a estabilidade em bases sustentáveis e compatíveis com o crescimento da renda e do emprego. Em segundo lugar, porque sem elas não há como aumentar a eficácia das políticas sociais, instrumento necessário para superar problemas de pobreza estrutural.
Não é segredo para ninguém que a eficácia das políticas sociais está hoje grandemente limitada, entre outros, por dois fatores fundamentais: i. falta de recursos para investimento em áreas como educação, saúde e saneamento; ii. queda vertiginosa da qualidade e produtividade no serviço público. Nessas condições, é pouca a capacidade do Estado de diminuir desigualdades sociais, tenha o governo de turno inclinações mais progressistas ou conservadoras a respeito.
A questão está em que, sem atacar os fatores fundamentais, as causas, vai-se continuar eternamente a denunciar mazelas, sem consequência prática maior (perdem com isso sobretudo os governos progressistas, pois despertam expectativas que dificilmente podem cumprir a contento).
E o ataque às causas passa por reformas fundamentais do Estado e da economia. Passa pelo avanço do processo de privatizações, de modo a diminuir o estoque da dívida pública e reduzir o dispêndio com pagamento de juros, para haver mais recursos para a área social. Passa pela correção de desequilíbrios crescentes no sistema previdenciário, notadamente na conta dos inativos da União, onde entram US$ 2 bilhões/ano e saem US$ 14 bilhões/ano. Passa pela flexibilização da estabilidade, para permitir ao gestor público lidar, conforme disposições legais, com casos-limite de ineficiência no desempenho de funções e situações-limite de excesso de pessoal, entre outras coisas para aumentar a produtividade do trabalho no serviço público e melhorar substancialmente a remuneração média do servidor.
Não fosse a falta de espaço, poderia estender-me. Mas o importante é reter o essencial. E o essencial é que as condições práticas de uma política progressista dependem de reformas que obrigam a corajosa revisão de velhas crenças, sob pena de transformar o combate às desigualdades sociais em mera figura retórica.

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