São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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A lei do fato consumado - zoneamento e clandestinidade

MARINA HECK

As sucessivas administrações do município de São Paulo continuam a não dar conta das transformações que o crescimento da cidade exige. Estamos sempre correndo atrás dos males já implantados, tentando corrigir fatos consumados ao invés de pensar no futuro e planejá-lo racionalmente.
É a eterna política do ``remendo" no lugar do planejamento. São Paulo é uma metrópole que não consegue revisar seu Plano Diretor globalmente à luz das novas realidades. A recente discussão em torno das modificações do zoneamento de certas áreas da cidade tem nos mostrado a falta que faz uma análise mais teórica e global desta evolução.
Sabemos da necessidade de bolsões verdes e pouco densos nas vizinhanças de bairros verticalizados. Daí encontrarmos hoje, em algumas regiões centrais, as Z-1 (de uso estritamente residencial) atravessadas por corredores de serviços.
A realidade, entretanto, vem pressionando estas zonas há algum tempo e os escritórios clandestinos têm se instalado desavergonhadamente nas residências destas regiões.
A fiscalização municipal, que faz vistas grossas a essa ocupação ilegal, e as imobiliárias e proprietários, que firmam contratos de locação comercial também ilegais, não são os únicos responsáveis por esta desonesta infiltração. Os vizinhos que convivem cotidianamente com a ilegalidade são cúmplices, ora por timidez, no exercício dos seus direitos de cidadão, ora por interesse, pois imaginam que um dia poderão também usufruir da ilegalidade implantada.
Esta questão fica mais clara quando examinamos algumas das ruas que atualmente são cogitadas a sofrerem alteração de zoneamento. Por exemplo, a rua Heitor de Moraes, na Z-1 do Pacaembu, que começa na praça Charles Miller e termina na rua Cardoso de Almeida. Trata-se de uma rua estreita, cheia de curvas e declives, sem a menor vocação de corredor comercial ou de serviços. Sua inclusão na lista de ruas cujo zoneamento pode vir a ser modificado é surpreendente. No entanto, basta consultar a lista telefônica para verificar que há vários escritórios nesta rua. Além disto, inúmeras casas estão à venda e as imobiliárias já anunciam a possibilidade de ocupação comercial. O lobby dos escritórios já instalados e dos proprietários ansiosos em vender suas casas é muito mais forte do que qualquer análise racional da evolução urbana.
Esse tipo de ``evolução urbana" que sorrateiramente vai ``comendo" pelas bordas, se infiltrando e desfigurando os bairros aos poucos, destruindo a idéia de vizinhança sem lhe dar tempo de se reconstruir é, no mínimo, ardilosa.
Não se trata aqui de defender nenhum privilégio das zonas de uso estritamente residencial, mas de lembrar que os bairros podem evoluir de maneira planejada, sofrendo modificações que não violentem sua história e sua cultura.
Estes bolsões pouco densos servem como pulmões em uma cidade como São Paulo e o seu desaparecimento é nefasto para todos. A falta de uma política habitacional de aluguel social já afastou definitivamente a população de baixa renda para a periferia. A extinção gradual e perversa das Z-1 deve permitir a proliferação das ``edge-cities", os condomínios-gueto da classe média nos arredores da cidade. Logo mais, São Paulo fecha no horário comercial.

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