São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Feministas têm visão falha da história da pornografia

ROBERT DARNTON

Especial para ``The New York Review"
Depois de ler obras de 150 anos de pornografia, achei difícil resistir à conclusão de que algumas feministas não entenderam bem as coisas. Em vez de condenar de saída toda pornografia, poderiam ter usado algo dela em causa própria.
Catharine MacKinnon pode estar correta ao associar os adeptos modernos da pornografia à idéia de que "sexo e pensamento são antitéticos". Mas esta afirmação não resiste aos argumentos desenvolvidos três séculos atrás nos "livros filosóficos, nos quais o sexo é "uma fonte inesgotável de pensamento" (3). E a acusação de Andrea Dworkin à pornografia assenta sobre uma visão incrivelmente anistórica da cultura:
"No mundo íntimo de homens e mulheres, a metade do século 20 não difere em nada de qualquer outro século. Há apenas os velhos valores -as mulheres estão aí para serem usadas, cabendo aos homens decidir como fazê-lo. Isso é antigo e é moderno; é feudal, capitalista e socialista; vale para o homem das cavernas e para o astronauta, para o agricultor como para o industrial, para o urbano e o rural. Para os homens, o direito de abusar das mulheres é elementar, é o princípio primeiro. (...) Na pornografia, os homens expressam os dogmas de sua fé imutável, aquilo que devem acreditar a respeito das mulheres e deles próprios para que se mantenham tais como são (...)". (4)
Em vez de recusar a reflexão histórica e restringir seus argumentos a noções culturalmente determinadas sobre as diferenças sexuais, as feministas poderiam recorrer à história da pornografia para mostrar como a dominação masculina foi exercida e desafiada ao longo do tempo. Ao mesmo tempo em que afirmava o direito das mulheres a se defenderem dos homens, a pornografia do começo da era moderna frequentemente representava o macho como um predador que agarrava qualquer fêmea a seu alcance e não tinha dores de consciência por conta de um estupro.
Dom B... se masturba enquanto ouve confissões e, então, violenta sua paroquiana mais suculenta. Sua violência e a resistência dela são descritas em detalhes torturantes. Mas, assim que ele a penetra, ela reage com paixão e mesmo o supera em lascívia; enquanto tentava afastá-lo, ela de fato o incitava -ou seja, queria dizer sim ao dizer não, outro tema recorrente nessa literatura. Quando o primeiro amante da heroína de "La Cauchoise" a pega com um outro homem, ele se vinga fazendo com que uma gangue a violente, enquanto ele mesmo os anima.
Nas histórias de prostitutas, as mulheres frequentemente acabam estupradas; e uma delas, mlle. Rosalie, da "Correspondance d'Eulalie", é encontrada pendendo de uma corda no Bois de Boulogne, com os seios cortados.
Alguns desses episódios aparentemente retiravam inspiração da ficção sensacionalista dos panfletos de vintém ("canards", "feuilles volantes" e baladas impressas). Não devem ser compreendidos literalmente, tal como não se deve ler "Fanny Hill" ("La Fille de Joie" -A Prostituta-, na tradução francesa pouco adequada) como um relato clínico sobre a sexualidade feminina.
Mas, tomada como literatura, a pornografia fazia supor que as mulheres estavam em constante perigo de serem violentadas, especialmente quando expostas a homens de poder e status superiores. Isto favorecia metáforas violentas: a virgindade de uma noiva é uma fortaleza a ser assaltada, a cama é um campo de batalha e o defloramento, uma matança.
"L'Académie des Femmes" descreve o hímen como "uma vítima (...) que deve ser sacrificada ou massacrada e feita em pedaços com profusão de sangue". Um noivo instrui sua noiva a render "aquela parte do teu corpo que já não é tua, mas minha"; e, ao penetrar sua vagina, ele entra "na posse de algo que me pertence".
A dominação masculina dificilmente poderia ser afirmada em termos mais diretos. É verdade que, por vezes, os livros de sexo parecem tanto perdoar quanto condenar o tratamento brutal às mulheres. Mas seria tolice tentar encontrar um argumento moderno pela liberação das mulheres em textos antigos destinados primordialmente a excitar homens.
Mas, ainda assim, os textos propõem idéias que refutam noções simplistas de falocracia. Depois de perderem a virgindade, as heroínas dessa literatura pornográfica muitas vezes conquistam uma espécie de independência -não a autonomia legal, profissional ou social, o que era virtualmente impossível sob o Antigo Regime, mas sim auto-estima intelectual: tão logo descobrem que o sexo é bom para pensar, elas aprendem a pensar por si sós. Em "L'École des Filles", Fanchon continua tola e servil até fazer amor pela primeira vez. Ela então atenta para um novo poder em suas mãos:
"Antes eu só servia para costurar e calar a boca, mas agora sei fazer todo tipo de coisas. Quando falo com minha mãe, já consigo achar razões para apoiar o que digo; aguento firme, como se fosse outra pessoa, em vez de ter medo de abrir a boca, como acontecia antes. Estou começando a ser esperta e a bisbilhotar em coisas que antes eram quase desconhecidas para mim".
"L'Académie des Femmes" iguala a abertura da vulva à abertura da mente e descreve a perda da virgindade como o primeiro passo para a aquisição de independência intelectual. Pelos cem anos seguintes, a pornografia continuou a tecer variações sobre este tema central.
Em "Vénus dans le CloŒtre", irmã Dosithée, uma fanática religiosa, flagela-se tão violentamente que chega a ejacular, rompendo seu hímen com uma descarga do fundo de seu ventre; então, subitamente, sua mente se esclarece, ela percebe a superstição no cerne do catolicismo e se converte ao deísmo.
Em "Histoire de Dom B..."(História de Dom B...), irmã Monique liberta-se da ignorância e abre sua mente à luz da razão por meio da masturbação. E o próprio Dom B... percebe pela primeira vez a ordem da natureza ao observar um casal copulando. E, em "Thérèse Philosophe", voyeurismo e masturbação abrem caminho por entre o falatório religioso e possibilitam a Thérèse tornar-se filósofa.
O tema aparece em toda a pornografia da época. A literatura do "Enfer" tem mesmo um termo específico para designá-lo: "déniaiser", perder a ingenuidade por meio do conhecimento carnal. No outro extremo do processo, as heroínas das histórias de sucesso sexual tornam-se "savantes" -não aquela espécie de "femmes savantes" satirizada por Molière, e não necessariamente eruditas, mas crítica e intelectualmente independentes. "Tornei-me `savante' -declara a narradora de "La Cauchoise", depois de um relato de sua iniciação nos mistérios do sexo; a partir daí, ela rejeita a religião e se recusa a aceitar "qualquer autoridade que não a da natureza".
A narradora de "Vénus en Rut" avança ainda mais no conhecimento da natureza, quando seduz um médico e o força a dar-lhe aulas de fisiologia, incluindo modelos em cera do funcionamento interno dos órgãos sexuais. As heroínas de "Margot la Ravaudeuse" e "La Correspondance d'Eulalie" estabelecem seus próprios salões e imperam sobre o mundo literário.
Nem todas abraçam a causa do Iluminismo, mas todas perseguem um interesse pessoal esclarecido e ascendem ao topo do Antigo Regime, recusando-se a aceitar seus preconceitos e explorando sua corrupção.
O sexo acaba por se mostrar útil para o pensamento e resistir à exploração masculina das mulheres, mas também para fazer oposição à exploração em geral. A pornografia procede assim a uma acusação generalizada ao Antigo Regime, seus cortesãos, senhores rurais, financistas, coletores de impostos e juízes -além de seus padres. Todos os que vivem do trabalho do povo levam alguma pancada em alguma passagem da narrativa.
Não que os livros de sexo clamassem por uma revolução; alguns deles -como "Lucette ou les Progrès du Libertinage' (Lucette ou os Progressos da Libertinagem)- até mesmo satirizavam livre-pensadores e filósofos. Mas, ao desenvolverem temas padrões, como a ascensão de uma rameira ou a corrupção da juventude provincial, eles expunham a trama de poder e influência que constituía "le monde", a todo-poderosa elite francesa.
"La Correspondance d'Eulalie", por exemplo, pode ser lida como um mapa do "monde", bem como "chronique scandaleuse" ou jornal ilegal; o livro oferece um comentário no calor da hora sobre peças e óperas, exposições de quadros, intrigas ministeriais, problemas externos e toda espécie de acontecimentos atuais, lado a lado com a vida sexual dos ricos e poderosos. O sexo serve meramente como veículo de crítica social -em várias direções e não apenas ao longo da grande barreira entre os sexos.
Concentrando-se exclusivamente na vitimização das mulheres, as críticas feministas da pornografia deixaram de perceber o papel que ela desempenhou ao expor outros tipos de abusos sociais. Mas a história também confirma alguns de seus argumentos centrais, especialmente o de que "a pornografia é acessório de masturbação" (5).
Obras como "Thérèse Philosophe" não apenas tomavam a masturbação como um tema central, mas ainda estimulavam os leitores a se masturbarem junto com as personagens das histórias. Como o conde de Mirabeau o disse da forma mais crua em sua introdução a "Ma Conversion ou le Libertin de Qualité" (Minha Conversão ou o Libertino de Qualidade) (1783): "Que a leitura `deste livro' faça todo o universo bater uma boa punheta."
Tais observações fazem supor um público masculino, ainda que não excluam necessariamente as mulheres. Ao se declararem voltadas para a educação das moças, "L'École des Filles" e "Lucette ou les Progrès du Libertinage" tentavam fazer comichões à imaginação dos homens. Mas "La Cauchoise" incluía as criadas em sua descrição mais direta do público leitor; e a narradora de "Eléonore ou l'Heureuse Personne" referia-se de passagem às "minhas leitoras", como se esperasse ter algumas.
Documentos iconográficos, como o famoso "Le Midi", de Emmanuel de Ghendt, mostram mulheres usando livros como estímulo à masturbação; e os próprios textos enfatizavam a masturbação feminina, frequentemente em ligação com a leitura. As freiras de "Vénus dans le CloŒtre excitam-se lendo "L'Académie des Dames", enquanto as prostitutas da "Correspondance d'Eulalie o fazem lendo Aretino; as filósofas de "Thérèse Philosophe" lêem "Histoire de Dom B..., e as lésbicas de "Progrès du Libertinage" preferem "Thérèse Philosophe".
"Bibliotecas galantes" são amiúde descritas nos romances. As referências mútuas entre os textos são tão densas e tão embebidas de auto-erotismo que este pode ser sentido a cada página, ainda que não possa ser referido exclusivamente aos homens.

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