São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Sexo ajudou a pensar a igualdade

ESPECIAL PARA "THE NEW YORK REVIEW"

Thérèse era também uma invenção da imaginação masculina, pois "Thérèse Philosophe, como o grosso da pornografia, foi escrita por um homem -provavelmente Jean-Baptiste de Boyer, marquês de Argens, talvez por um certo D'Arles de Montigny, ou quiçá mesmo por Diderot.
A própria Thérèse pertence a uma longa linhagem de narradoras femininas que remonta até a Nanna de Aretino. Todas elas expressam fantasias masculinas e não a voz remota de um primeiro feminismo moderno. Enquanto prostitutas, concubinas e freiras, elas perpetuam o mito da mulher voluptuosa que aceita a submissão a fim de dar rédea solta à sua lascívia. Nada poderia estar mais distante dos horrores da prostituição do que a ficção da prostituta feliz.
Mas essas mulheres fictícias representavam um desafio à subordinação das mulheres no Antigo Regime. Elas desafiavam sobretudo a Igreja, que fez mais do que qualquer outra instituição para manter as mulheres em seu lugar. A pornografia é tão embebida em anticlericalismo, que por vezes parece mais interessada em religião do que em obscenidades; na verdade, ela é mais irreligiosa do que as impiedades espalhadas por algumas das obras mais famosas do Iluminismo, como "O Espírito das Leis", de Montesquieu, e a "Enciclopédia", de Diderot.
Os padres estão sempre conspurcando o confessionário para seduzir suas paroquianas; os monges estão sempre transformando conventos em haréns; curas de província sempre abusam dos camponeses, deflorando, praticando adultério e mandando suas vítimas para as cidades, onde se tornam presa de prelados; bispos e abades têm seus alcoviteiros e casas de prazer exclusivos. Mesmo assim, não conseguem se proteger das doenças venéreas, que consomem o alto clero a par com a alta aristocracia.
Esses temas podem ser expressos abstratamente como questões de corrupção e exploração, mas a pornografia os torna mais concretos ao encarná-los em histórias de sexo.
A heroína de "Vénus en Rut, ou Vie d'une Célèbre Libertine" (Vênus no Cio, ou Vida de uma Célebre Libertina, 1771?) cita a famosa observação de Mme. de Pompadour sobre o Bispo de Condom (nem mais, nem menos), que havia contraído sífilis: "Por que ele não ficou em sua diocese?"; ela revela então o que fez com um bispo seu conhecido, quando conseguiu trazê-lo para a cama: para fazê-lo crer que era um grande amante, exclamou enquanto ele se contorcia sobre ela: "Ah! Monsenhor, quanta volúpia! " `Cale-se!' -respondeu ele- `ou não conseguirei gozar' . Depois de chegar com muito custo ao orgasmo, ele explica que qualquer referência a seu título -"Monsenhor- era o bastante para estragar sua ereção pelo resto da noite: "Um único `Monsenhor' já é o suficiente.
Na "Correspondance d'Eulalie", um bispo compra algumas noites com a concubina de um marquês. Avisado por um espião, o marquês os surpreende. Mas, em vez de se enfurecer, ele apresenta ao bispo uma conta de 15 mil libras, a soma que gastara com a mulher nos três meses anteriores (e equivalente a 300 anos de salário de um artesão especializado), ameaçando divulgar sua conduta caso se recuse a pagar.
O bispo cede ao suborno, mas assim mesmo vira motivo de riso na roda parisiense de boatos e é obrigado a retirar-se para sua sé. Em "Margot la Ravaudeuse", a heroína homônima arranca ainda mais de um prelado -24 mil libras em duas semanas- e o manda de volta a seus paroquianos com um belo caso de doença venérea, recompensa justa -diz ela- por haver extorquido o dinheiro à gente comum.
Seria fácil achar anedotas semelhantes no anticlericalismo anterior, especialmente na vertente licenciosa de Boccacio, Rabelais e Aretino. Mas estes autores permaneceram fundamentalmente cristãos -Aretino quase foi cardeal e escrevia tanto vidas de santos quanto pornografia-, enquanto a pornografia do século 18 usava o sexo para exprimir as idéias-chave do Iluminismo: natureza, felicidade, liberdade, igualdade.
Tal como Margot, a narradora cortesã de "Vénus en Rut" expõe o artificialismo das distinções sociais, ascendendo do fundo ao ápice da sociedade sem sair da cama. Ela aprende que todos os homens são iguais tão logo estejam deitados -ou melhor, eles diferem conforme os dotes que tenham recebido da natureza: seu temperamento (onde as classes mais baixas superam as mais altas, já que três orgasmos de um criado valem mais que oito de um conde) e seu físico (mas os pênis não devem ser avaliados segundo seu tamanho -"entre 17 e 20 centímetros deveriam bastar a qualquer mulher de bom gosto"). A conclusão é clara: "No estado de natureza, todos os homens são iguais; este é certamente o estado da cortesã."
Enquanto proposição, a idéia era bastante comum; mas ganhou força incomum por estar encarnada em histórias com linhas narrativas fortes: foi assim que o sexo ajudou os leitores a pensar a igualdade numa sociedade profundamente desigual.
A mesma linha de raciocínio aplicava-se também às relações entre homens e mulheres. Despindo todos de suas distinções sociais, a pornografia expunha semelhanças e diferenças da sexualidade de cada um dos sexos -ao menos tal como as entendiam autores masculinos escrevendo como narradoras femininas.
Em seu nível mais básico -como em "Thérèse Philosophe"-, as diferenças reduzem-se a pouco ou nada, pois todos os humanos são máquinas compostas das mesmas partículas de matéria. O prazer simplesmente põe a matéria em movimento, primeiro por meio dos estímulos aos órgãos sensoriais, depois como sensação que se transmite pelo sistema nervoso, e finalmente como uma idéia a ser armazenada e recombinada no cérebro.
As diferenças entre homens e mulheres também eram mínimas na pornografia do século 17, que recorria a Galeno e Descartes para propor uma visão fisiológica do sexo. Em "L'École des Filles", a vagina é um pênis invertido e completo, dotado de "testículos e "canais espermáticos", e as mulheres ejaculam o mesmo "licor branco e denso que os homens."
A fecundação ocorre quando ambas as partes chegam ao orgasmo e seus líquidos se encontram -logo, o prazer feminino é crucial para a reprodução. Mas ela pode também evitar a concepção, controlando "o combate de sêmen contra sêmen" com movimentos de suas coxas e nádegas; é ainda ela que deve dirigir a ação e ficar por cima do homem sempre que quiser, tanto para maximizar o prazer quanto para estimular a "humildade" masculina. Montando seu amante, a heroína de "Histoire de Marguerite' (História de Marguerite, 1784) "ejaculou tão profusamente que me banhou em seu sêmen delicioso do umbigo ao meio das coxas."
Por trás da mecânica e da hidráulica da sexologia estava uma noção utópica de homens e mulheres copulando e ejaculando infindavelmente, em perfeita sincronia. "L'École des Filles" até mesmo revivia o antigo mito que via homens e mulheres como metades divididas de um todo andrógino que busca sempre reunificar-se.
As doutrinas sexuais da Igreja Católica eram recusadas como absurdas, inventadas pelos homens a fim de dominar as mulheres, a despeito das verdades manifestas na ordem da natureza. Século e meio mais tarde, "Eléonore, ou l'Heureuse Personne" (Eleonora, ou a Pessoa Feliz, 1798) desenvolvia o mesmo tema numa fábula sobre o hermafrodita que trocava de sexo uma vez ao ano, transitando entre monastérios e conventos, enquanto experimentava todas as combinações sexuais concebíveis.
Em suas fantasias mais desvairadas como em suas ficções mais científicas, a pornografia tornava possível pensar a igualdade sexual em desafio aos valores mais fundamentais do Antigo Regime.
Em alguns casos, esses experimentos hipotéticos aproximavam-se dos temas do feminismo moderno. Em 1680, "L'Académie des Femmes" protestava contra o código sexual distorcido que submetia as mulheres à "inumanidade dos homens". Muito embora as mulheres tivessem maior capacidade para o prazer sexual, era aos homens que se dava maior liberdade de desfrutá-lo. Portanto, seguia o argumento, as mulheres deveriam vingar-se fingindo respeitar as convenções sociais absurdas em público, ao mesmo tempo que, em segredo, davam rédea solta a seus instintos naturais -a saber, traindo seus maridos.
Tullie, a matrona experiente em coisas mundanas, adverte Octavie, noiva ingênua, de que, no casamento, "as leis civis são contrárias às da natureza". Mas uma esposa pode restabelecer um pouco da justiça, fazendo a seu amante o que seu marido faz a ela: "O primeiro, `o marido', me domina; eu domino o outro. Meu marido tem o gozo de meu corpo, e eu, o do corpo de meu amante".
Em 1740, a "Histoire de Dom B..." condenava "o cativeiro em que o sexo `feminino' é mantido". A mãe do herói dera um sermão admirável sobre a corte e o casamento, denunciando a moral convencional como um modo de subjugar as mulheres aos homens. E, em 1784, a "Correspondance d'Eulalie" brincava com uma solução fantasiosa para o problema da dominação masculina: as mulheres poderiam retirar-se para comunidades lésbicas auto-suficientes no campo. O livro repetia o tema batido da capacidade superior da mulher para orgasmos múltiplos e celebrava em verso sua superioridade geral:
"Par des raisons, prouvons aux hommes
Combien au-dessus d'eux nous sommes
Et quel est leur triste destin.
Nargue du genre masculin.
Démontrons quel est leur caprice,
Leur trahison, leur injustice.
Cantons et répétons sans fin:
Honneur au sexe féminin." (2)

Continua à pág. 5-6

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