São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Um humor perdido no tempo

ROBERT DARNTON

Especial para "The New York Review"
A pornografia que estamos examinando se desenvolveu a partir de uma cultura que nos parece impensável hoje, tal como, daqui a três séculos, os acidentes automobilísticos e tiroteios da nossa televisão parecerão desconcertantes aos pesquisadores.
No século 17, obras como "Le Rut ou la Pudeur Éteinte" faziam parte de um mundo rabelaisiano, que combinava a confusão das ruas com a sofisticação da corte. No século 18, a cultura das ruas continuou a deixar suas marcas nos livros licenciosos, mas seu caráter modificou-se: ela se concentrou nos bulevares que, substituindo as muralhas medievais de Paris, formavam o cenário de um novo teatro popular e de um novo tipo de prostituta, a "grisette", que ascendia das lojas de roupa da rua Saint Honoré aos apartamentos elegantes atrás dos bulevares, nas ruas Tiquettone e de Cléry.
Todas as histórias de prostitutas posteriores a 1750 levam seus leitores para passeios por esse território, descrevendo a comida dos bistrôs, a mobília dos bordéis, a música dos salões de dança, os gestos nas pantomimas e as farsas nos teatros.
"La Correspondance d'Eulalie" pode ser lida em algumas passagens como um guia de viagem, incluindo notas de rodapé para a edificação moral de provincianos ignorantes. A certa altura, mlle. Julie, cortesã de luxo, diverte-se, saindo, com um homem de condição mais baixa, do teatro de vaudeville de Nicolet. Ela o faz pensar que "eu era uma daquelas garotas dispostas a aceitar um jantar num bom bistrô de bulevar como preço de seus favores".
Ela o manda pedir uma refeição ``chez Bancelin" e então desaparece. Uma nota de rodapé explica que Bancelin é o mais famoso taverneiro do bulevar e que, para "esquentar" a refeição, é possível encomendar canções libertinas das "joueuses de viele" (cantoras de rua que acompanhavam o próprio canto com vielas de roda), que também prestam serviços sexuais.
Num outro ponto, Julie sai para jantar no bulevar e pede uma rodada de baladas apimentadas, que ela então transcreve em sua narrativa; e, assim, por alguns momentos, as memórias da prostituta transformam-se numa antologia de música de rua.
É esse o ambiente de onde mais tarde surgiriam o mundo balzaquiano de "Esplendor e Misérias das Cortesãs", o mundo boêmio de "La Bohème" (ópera de Puccini) e o mundo poético de "O Bulevar do Crime" (filme de Marcel Carné). Mas, no século 18, esse meio permanecia distante dos sentimentos que até hoje encontram eco em nós.
Nas "Mémoires de Suzon" (Memórias de Suzon), a própria Suzon torna-se dançarina de uma taverna de bulevar. Certa noite, a caminho de casa, ela dá de encontro com dois soldados, que a arrastam para um lugar ermo na estrada de Montmartre e a violentam. Trata-se de um acontecimento corriqueiro, não fosse pelo fato de um dos soldados ter um pênis tão monstruoso, que não consegue introduzi-lo nela.
No caminho de volta, eles percebem uma pedra de afiar em um carrinho de mão deixado do lado de fora de uma estalagem por algum afiador de facas itinerante, e Suzon sugere uma solução para o problema do soldado. Ela se equilibra por cima do carrinho de mão e urina sobre a roda, a fim de reduzir a fricção, enquanto o soldado desgasta seu pênis até um tamanho utilizável.
Esta "cena engraçada" -conforme diz Suzon- diverte a multidão de 200 espectadores, mas não parece nada engraçada para o leitor moderno. O mesmo acontece com as outras experiências de Suzon nos bulevares: sexo grupal com alguns acrobatas espanhóis e cópula "cômica" por trás das cortinas com o Arlequim e o Pierrô de uma pantomima.
Igualmente sem graça são os defloramentos que proporcionam um alívio cômico à tensão sexual em toda essa literatura. As prostitutas estão sempre pilheriando sobre os adstringentes que tomam para simular a virgindade e, assim, levar seus clientes a pagarem um suplemento.
Uma delas, a mlle. Felmé de "Correspondance d'Eulalie", retira-se para a província sob nome falso, casa-se com um magistrado e descreve sua noite de núpcias burlesca com a experiência de uma profissional: a bolsinha de sangue escondida em sua vagina, o tratamento com vinagre, a fuga para debaixo dos lençóis, a insistência em apagar as velas, a resistência fingida, a frigidez fingida e o grito triunfal do marido na manhã seguinte, quando acha o sangue falso na roupa de cama: "Ah! minha mulher era virgem! Que felicidade!"
Não é difícil perceber onde está a piada, mas é igualmente difícil rir com ela -o mesmo acontecendo com o adultério e a transmissão de doenças venéreas, duas outras fontes inexauríveis de riso nos livros de sexo. Para ver algo mais nessa espécie de humor, é indispensável saber mais a respeito dos roteiros sérios para as noites de núpcias, que também podem ser encontrados nos livros de pornografia.
O melhor dentre muitos exemplos vem de "L'Académie des Dames" e tem lugar na casa dos pais da noiva. Sua mãe despe-a na frente do noivo, leva-a nua para a cama e junta-se ao resto da família no aposento ao lado, fechando a porta atrás de si. Depois de se despir, o noivo puxa os lençóis e certifica-se da virgindade da noiva, metendo o dedo em sua vagina. Ela se enregela e depois resiste, enquanto ele a beija e acaricia; aos poucos, ele a força a abrir as pernas e a penetra. Enquanto ele força sua entrada, ela grita de dor e medo, para grande satisfação de sua família, que ouve tudo logo ao lado.
Um orgasmo preliminar arrefece temporariamente o noivo. Mas seu segundo "ataque" vai mais fundo, até que o terceiro rompe o hímen, e a "fortaleza" é tomada. O noivo exige que a vagina, "toda quebrada e rasgada", reconheça seu pênis "como seu soberano". Ele então ataca mais uma vez, fazendo a cama ranger e a noiva gritar tão alto que, quando o quarto finalmente silencia, a mãe entra de novo. Ela oferece ao noivo um vinho aromatizado e o reconhece formalmente como filho: "Meu filho, como lutaste bravamente! És um herói! Os gritos de minha filha são testemunho inquestionável de sua derrota. Eu te congratulo pela vitória".
No mesmo livro, uma outra noite de núpcias segue o mesmo roteiro, descrito com a mesma profusão de imagens militares. Quando a mãe chega com a bebida, ela diz: "Bravo soldado... Agora te reconheço como meu filho e genro".
E, mais tarde, um terceiro noivo deflora a noiva conforme o mesmo ritual -desta feita apresentado parodicamente. Ela é uma moça camponesa simplória e ele é criado de uma senhora aristocrática, que o usa como garanhão doméstico. A fim de usar seu poder e pregar uma peça, a senhora doutrina a moça com informações invertidas sobre como se comportar na ocasião. Em vez de se encolher, a moça agarra o pênis do noivo, remexe as nádegas freneticamente e levanta as pernas para o ar. Ela dá todos os sinais errados, como se fosse uma prostituta e não uma virgem: é esta a piada, que só é engraçada para os que compartilham o mesmo código cultural.
Vale lembrar que "L'Académie des Dames" é um livro de sexo e não o caderno de campo de um etnógrafo. O livro dá uma versão de uma noite de núpcias ideal, tal como o século 17 a imaginava, não um relato confiável de como as pessoas se comportavam na cama. Mas esse ideal ainda servia como alvo de piadas um século mais tarde. Ainda que não tenha correspondido fielmente ao comportamento real, esse ideal definia uma certa mentalidade, um mundo que (por sorte) perdemos -e tão completamente, que temos que consultar a literatura pornográfica para poder entrevê-lo.

Continua à pág. 5-8

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