São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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A moral ambígua do infortúnio

ROBERT DARNTON

Especial para "The New York Review"
Como exemplo final da estranheza dessa literatura, consideremos a "Histoire de Dom B...", o maior e mais ultrajante de todos os livros do "Inferno".
Desta vez, excepcionalmente, o narrador é um homem, o monge Dom B... (o "B.".. significa "bougre", "sodomita", mas seu verdadeiro nome é Saturnin). Quando era ainda um adolescente obcecado por sexo e dado a espiar por um buraco na parede, Saturnino vê sua mãe copulando com um monge. Ele logo quer fazer o mesmo com sua irmã Suzon (mais tarde, descobre-se que nenhum deles é parente de sangue, mas o texto brinca com todas as variedades do tabu do incesto).
A fim de excitar Suzon, ele a traz até seu posto de observação e, enquanto ela observa a rodada seguinte de cópula, ele se agacha para olhar por baixo da saia dela. Então, ele vai levantando a mão pela perna dela, seguindo o ritmo de suas coxas, que se contraem e relaxam conforme o ritmo no quarto ao lado. Finalmente, ele força a entrada em sua vagina: "Te peguei, Suzon; te peguei"!
Enquanto Suzon continua colada ao buraco na parede, Saturnin a masturba e arranca suas roupas. Ela afasta as pernas e ele tenta possui-la por trás. Mas a posição é inviável, de modo que ele a arrasta aos rodopios para a cama. Ele penetra, ela se contorce e, justo quando ambos começam a arfar de êxtase, a cama rui sob os dois.
A mãe irrompe no quarto, furiosa; mas, quando percebe a ereção de Saturnin, ela muda de conversa e o puxa para a cama no outro quarto, enquanto o monge toma o lugar de Saturnin com Suzon. Assim, depois de violar a virgindade da irmã, Saturnin trai o pai e conclui em tom de desafio aos leitores:
"Aqui, há muito para dar o que pensar aos leitores cujo temperamento glacial não sentiu jamais as fúrias do amor! Adiante, messieurs, refleti, dai vazão a toda vossa moral! Eu vos abandono o campo e só desejo dizer uma coisa mais: se tivésseis um tesão tão insuportável quanto o meu, quem iríeis foder? O próprio demônio."
Muito bem, diria o leitor de hoje, aqui está um pouco de baixaria setecentista; o que há de tão surpreendente? O resto do romance prossegue na mesma tônica, num ritmo de tirar o fôlego, empilhando crítica social anticlerical entre uma orgia e outra. Cada episódio supera o anterior, até que todas as inibições parecem destruídas. A escalada sexual arrebata tudo a sua frente e, no final, abandona o herói num prostíbulo particularmente sórdido.
Ali, depois de anos de separação, ele reencontra Suzon. Depois de ter sido seduzida e abandonada por um padre, ela sobrevive a um aborto quase fatal, a uma estadia num pestilento asilo de pobres e a uma terrível carreira como prostituta. Agora, ela se encontra no estágio terminal de um caso maligno de sífilis.
Mas Saturnin a ama. Ele sempre a amou, com uma paixão visceral que jamais deixou sua alma, e por isso ele quer fazer amor com ela uma vez mais. Ela recusa, sabendo que o mataria com sua doença. Mas ele insiste, e os dois unem seus corpos pela última vez, durante toda a noite, no fundo de um bordel decrépito. Nenhum palavrão no texto; nenhum indício de lascívia.
Subitamente, a polícia invade o local. Suzon é aprisionada. Saturnin abate um dos policiais com um golpe de ferro de lareira, mas os outros o arrastam escada abaixo, deixando-o inconsciente. Suzon desaparece numa prisão, onde logo morre de sua doença. Saturnin desperta em outra, febril com os primeiros sinais da sífilis; desfalece novamente e novamente desperta, desta vez acordado por uma dor entre as pernas.
Ele se apalpa com as mãos e descobre que foi castrado. No fundo de suas entranhas, forma-se um som que lhe sobe pela garganta e explode num grito que ecoa no teto: Saturnin já não é mais homem, não tem mais por que viver.
Uma cirurgia o salva, ainda que agora ele queira morrer, sabedor que é da morte de Suzon. Ele não sabe a quem se dirigir ou o que fazer com sua nova liberdade. Põe-se a caminho, entregando o destino à Providência. Vai dar a uma cartuxa e, subitamente, tem uma visão da vida a ser levada, longe da agonia das paixões. Depois de ouvir sua história, o superior do monastério o admite; e Saturnin torna-se Dom B..., porteiro dos cartuxos:
"Espero aqui pela morte, sem temê-la ou desejá-la. Depois que ela me libertar do mundo dos vivos, eles gravarão em letras de ouro sobre minha tumba: `Hic situs est Dom Bougre, fututus, futuit' (Aqui jaz Dom Bougre, fodido, ele fodeu)".
É uma história escabrosa, que merece um lugar entre "Manon Lescaut" e "La Nouvelle Héloîse". Nela, o erotismo é tragado pelo ascetismo, a pornografia pela religiosidade. É claro que o epitáfio burlesco deixa tudo em suspenso. A nota de paixão no final poderia ser mais um truque dos padres, a moral poderia ser especiosa. Mas o caráter aberto da história é parte de seu desígnio. O sexo pode levar ao amor, o amor à salvação e a salvação à conclusão de uma narrativa de surpresas crescentes. Ou talvez tudo seja uma piada.
O romance é rico o bastante para permitir várias leituras. Mas, se for uma piada, será de espécie tal a só ser compreendida por alguém com alguma idéia do que tenha sido a devoção agostiniana, especialmente em sua variedade jansenista, durante os séculos 17 e 18.
Vista a essa luz, a história inteira leva a um espetacular "non sequitur": o monastério, em vez de ser um bordel, acaba por se mostrar um genuíno refúgio dos tormentos da carne; e Saturnin, depois de ter praticado todas as formas concebíveis de pecado sexual, encontra sua verdadeira vocação de monge. Ele está redimido ou, como diz seu epitáfio, meramente fodido?
Seja ela uma refutação ou uma confirmação da religião, sua história ilustra a precariedade do esforço de achar algum sentido para a vida, tanto em meados do século 18, quando jansenismo e Iluminismo ameaçavam anular um ao outro, como hoje; pois não há como fechar uma obra-prima pornográfica como "L'Histoire de Dom B.".. sem pensar que sexo dá o que pensar.

NOTAS
1. A melhor história geral da literatura erótica ainda é a de Paul Englisch, "Geschichte der Erotischen Literatur" (Stuttgart: J.Pttmann, 1927). Como exemplo dos estudos contemporâneos, veja-se Lynn Hunt (org.), "The Invention of Pornography: Obscenity and the Origins of Modernity (Zone Books, 1993), especialmente os excelentes capítulos de Lynn Hunt e Paula Findlen.
2. Por meio de argumentos, provemos aos homens/ como lhes somos superiores/ e qual é seu triste destino./ Vergonha ao gênero masculino!/ Demonstremos como é grande seu capricho,/ sua traição, sua injustiça./ Cantemos e repitamos sem parar:/ Honra ao sexo feminino.
3. Catharine MacKinnon, "Only Words" (Harvard University Press, 1993), pág. 17, e "L'École des Filles (1655), republicado em "L'Enfer de la Bibliothèque Nationale" (Fayard, 1988), vol. 7, pág. 274.
4. Andrea Dworkin, "Pornography: Men Possessing Women" (Putnam, 1981), pág. 68.
5. MacKinnon, op. cit., pág. 17.
6. Jean Marie Goulemot, "Ces Livres Qu'on Ne Lit Que d'Une Main: Lecture et Lecteurs de Livres Pornographiques Au XVIIIe Siècle" (Paris: Alinea, 1991), págs. 134 e 153-155.
7. MacKinnon, op. cit., p. 24.

OS LIVROS
"Teresa Filósofa", anônimo, L&PM
``L'Enfer de la Bibliothèque Nationale", vários autores (ed. Fayard, Paris, em sete volumes)
``Romans Libertins du XVIIIe Siècle", editado por Raymond Trousson (ed. Laffont, 1.440 págs., 140 francos)
``Ces Livres Qu'On Ne Lit Que d'Une Main: Lecture et Lecteurs de Livres Pornographiques au XVIIIe. Siècle", de Jean Marie Goulemot (ed. Alinea, 171 págs., 129 francos)
Podem ser encomendados à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011 231-4555, São Paulo)

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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