São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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O poema maldito de Bernardo Guimarães

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Quis o destino que viesse de Vila Rica, já então Ouro Preto, a única obra de escol recolhida ao ``purgatório" da Biblioteca Nacional. Título: ``O Elixir do Pajé". Não é prosa, é poesia. Oficialmente ``erótico-cômica". Mas, na época em que surgiu, o clero mineiro a qualificou apenas de obscena, lançando sobre seu autor, B.N., todas as maldições do céu. B.N. era Bernardo Guimarães (1825-1884), que, malandramente, imputou a um sacristão da cidade a feitura do poema.
Relativamente conhecido até nossos dias, com a ajuda do cinema e da telenovela, Guimarães fez mais fama como romancista (``O Seminarista", ``A Escrava Isaura") do que como poeta. Regionalista na prosa e quase sempre romântico nos versos, dedicou-se à busca de um Brasil verdadeiro, original, puro, edênico, livre de influências externas -mas não daquelas que o levaram a conceber sua escrava com uma ``tez de margim de teclado".
Herdeiro de José de Alencar, era admirado por Manuel Bandeira e mal visto por Tristão de Athayde, entre outros. A maneira derramada como descrevia a exuberância de nossas matas -com seus ``rios caudalosos", seus ``vergéis floridos", seus ``sabiás sonorosos" e suas ``rolinhas meigas"- provocava engulhos em Monteiro Lobato, para quem a roça de Guimarães parecia ter sido adjetivada por uma menina do Colégio Sion.
Embora tenha feito da figura do sertanejo a expressão máxima da brasilidade, abrigou alguns índios em sua obra -nenhum tão notável quanto o pajé do fescenino e maldito poema, reeditado quase que clandestinamente há 40 anos e doado em 1958 aos arcanos da Biblioteca Nacional. Guimarães o escreveu de molecagem, salvo engano no período em que andou metido com a ``boemia bestialógica" de Ouro Preto, gozando tudo e parodiando até modinhas dos amigos. É um solilóquio rimado, no qual um velho curandeiro pranteia a perda da virilidade, afinal recuperada por um elixir de ervas miraculosas.
Suas primeiras estrofes dão o tom do resto:
``Que tens, caralho, que pesar te oprime
Que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
Sumido entre essa basta pentelheira,
Mole, caindo pela pança abaixo?
Nessa postura merencória e triste,
Para trás tanto vergas o focinho,
Que eu cuido vais beijar, lá no traseiro
Teu sórdido vizinho!
Que é feito desses tempos gloriosos,
Em que erguias as guelras inflamadas,
Na barriga me dando, de contínuo,
Tremendas cabeçadas!"
Uma menina do Colégio Sion não teria escrito estes versos.
Admiradores não lhes faltam, mesmo entre gente de seriedade irreprochável. O professor Antonio Candido, nosso maior crítico literário, sabe-os de cor e salteado. Assim como o ator Paulo César Pereio, que os declamou sentado num vaso sanitário para um vídeo realizado por outro entusiasta, o também mineiro Helvécio Ratton, hoje especialista em dirigir filmes para crianças, como ``A Dança dos Bonecos" e ``Menino Maluquinho".
(SA)

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