São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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PURGATÓRIO DA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO

Pequeno acervo carioca não faz juz à libidinagem brasileira

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Nossa Biblioteca Nacional possui valiosas obras em seus arcanos, inclusive uma bíblia de Gutemberg, mas nunca chegou a dispor de um "inferno", como a de Paris. O que de seu acervo, por algum tipo de pudor, é mantido fora do alcance público, faz jus, no máximo, a um "purgatório". Mas nem sequer por este eufemismo é tratada a divisão de raridades onde se encontram guardados, entre outras relíquias de somenos, um punhado de pêlos pubianos de D. Pedro 1º, devidamente autenticados e uma coleção de livros ditos eróticos ou libertinos escritos e publicados no Brasil.
Oficialmente, o "purgatório" fica no Departamento de Referências e Difusão, sob os cuidados da professora Maria Lizete dos Santos. Desde 93, qualquer um, com permissão especial, pode ter acesso aos seus tesouros -se é que de fato merecem ser assim chamadas as 56 obras que a Biblioteca Nacional recolheu aos seus cofres há pouco mais de 60 anos.
Doadas por quem, ninguém mais se lembra.
Robert Darnton decerto as desdenharia. Principalmente se aqui viesse à cata de libertinos literários à altura de Diderot, Condorcet e Mirabeau. Se razoavelmente íntimo de nossas letras, se surpreenderia com a ausência, no "purgatório" da Biblioteca Nacional, de textos pornográficos cometidos, sob pseudônimo, por Gregório de Matos e outras controvertidas figuras, como Manuel de Oliveira Paiva, Júlio Ribeiro -que, a exemplo dos libertinos parisienses, nadavam contra a corrente política da época-, e os árcades da Conjuração Mineira, irmãos ideológicos dos revolucionários franceses, mas em geral presos a emoções e valores da terra.
Ocorre que nenhum deles sentiu-se compelido a conceber, na surdina, romances e poemas libidinosos e anticlericais. Talvez porque tenhamos vivido um ambiente de lutas bem mais diverso do europeu do que se supunha, num país continental recém-saído do sistema colonial, sem déspotas esclarecidos e à sombra de uma Igreja sem fissuras internas.
O máximo a que o realismo (ou o naturalismo) de Ribeiro chegou foi aos rompantes lascivos de Lenita, em "A Carne", romance escrito e publicado sem rebuços em 1888, que muita repugnância causou à sociedade paulista. E, também, ao crítico José Veríssimo, que o reduziu a um "parto monstruoso", originário de "um cérebro artisticamente enfermo".
A escassa produção de obras pornográficas -ou mesmo eróticas- de autores nacionais de proa, envolvidos ou não com ideais separatistas, abolicionistas e republicanos, foi um dos motivos da ausência da literatura brasileira no curso sobre "Libertinos/Libertários", organizado pela Funarte no Rio e em Belo Horizonte.
Seu idealizador, Adauto Novaes, não encontrou um só interessado em discutir as razões que levaram a Bastilha a ter "as delícias do amor" de Brettone e Vila Rica, o arfante bucolismo de Cláudio Manuel da Costa. Nem sequer um conferencista disposto a dissertar sobre o cultuado "Elixir do Pajé" (leia texto nesta página) ele conseguiu arrumar.
Que anônimas titilações porno-eróticas afinal compõem o "purgatório" da Biblioteca Nacional? São livros de curta leitura, a maior parte traduzida do francês, alguns, poucos, ilustrados, com desenhos e fotos, vez por outra tão explícitos quanto os daqueles gibis de Carlos Zéfiro, o mestre da sacanagem em quadrinhos. Datam do início do século, dividem-se em várias coleções (com nomes como Vênus, Leitura de Alcova, Galante e Demi Monde) e não escondem onde foram impressos (sempre em gráficas legalmente estabelecidas no centro do Rio de Janeiro).
Autores? Anônimos. Os pseudônimos vão do morigerado (Erre e Erre, R. Lais), ao impudico (Zé Teso, Manuel Brochado), com concessões ao humor fácil (Capadócio Maluco) e à onomática importada (Fabricio del Dongo, Pepe Galhardo, Agapito Garrido, Edouard Dulac, até um Emilio Zola aparece numa das edições de "A Novela Brejeira", editada pela Imprensa Moderna, uma das mais ativas do ramo).
Os títulos oscilam entre a insipidez ("A Família de Moral", "Café Com Torradas", "Não Toquem na Rainha", "O Menino do Gouveia"), a ambiguidade ("Por Obra e Graça do Espírito Santo", "A Santa Inocência", "O Pássaro de Cornélio", "A Ordenhadora", "A Loucura dos Sentidos") e a indecência mais e menos explícita ("Consolo-de-Viúva", "Chifres Para Todos", "A Cabeça do Carvalho", "A Corneta do Oficia"l, "A Linguiça").
Noites de núpcias, até nos títulos, há várias; assim como casos de adultério, incesto, homossexualismo (relativamente poucos), masturbação, desvirginamento, estupro e doenças venéreas. Felações e cunilínguas, até na parte iconográfica dão o ar de sua desfaçatez.
A qualidade literária, por assim dizer, varia. No "purgatório", o lixo é a regra. Os autores mais ambiciosos tentam caprichar nas imagens, mas seu repertório de idéias limita-se, como em quase toda prosa pornográfica, a meia dúzia de metáforas e metonímias que já viraram clichês. Exemplo emblemático: "Leonardo empinou o símbolo de sua virilidade e cavalgou até o sedoso pasto que tanto cobiçava".
Em outras circunstâncias, o órgão sexual masculino deixa de ser cavalo, para tornar-se cobra, serpente, robalo, embora a maioria dos autores prefira transfigurá-lo em coisas mais, digamos, abstratas ("pujança, "potência") e concretas ("espada", "seta', "dardo", "verga", "descanso de carroça" e falos que tais). O sexo feminino tampouco escapa ao trivial: "gruta de Vênus", "pórtico do amor", "orifício divino", "botão irrequieto", "templo de Afrodite", "bosque do prazer", "vassoura das damas".
Os pornógrafos das décadas seguintes, não conservados no "purgatório", não seriam mais criativos, mas ao menos demonstraram ter mais senso de humor ao privilegiar sinônimos eufonicamente engraçados, como "mastruço", "jeba, "chanfalho", "pemba", "chibiu", "periquita", "xereca", "xavasca" - vocábulos, por sinal, já registrados em dicionário.
Descrições pretensamente ambiciosas convivem, lado a lado, com conflitos corriqueiros, protagonizados por personagens de nomes nada eróticos. Em "A Cabeça do Carvalho", escrito por um tal de "Vagabundo", uma jovem chamada Ivete, casada com um velho, acaba cedendo às investidas de Julião, bem mais novo que o marido dela e viril como um garanhão. Quantas vezes já topamos com situações semelhantes? O nome completo do impetuoso (e alcoviteiro) amante até que não é dos mais estrambóticos, Julião Alcoforado; mas o mesmo não se pode dizer de sua esposa, Jurumenha Nicomedes, e do maior amigo da família, Maneco Clarinete.
Para dar um pouco de verniz intelectual à narrativa, escritores como Edmond de Rostand, Byron, D'Annunzio e Dante são invocados pelo autor ou citados pelos personagens. Uma coisa é certa: nenhum deles, nem em seus momentos menos inspirados, teria descrito desta maneira a primeira felação de Ivete: "Ela por cima, curvada como um arco, chupava com fúria o descanso de carroça do alcoviteiro".

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