São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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A batalha da lucidez

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há poucas experiências tão absolutamente coletivas quanto a da guerra moderna, particularmente do ponto de vista dos combatentes. Não é à toa que seu traje se chama uniforme. Numa guerra como a que acabou há meio século, forças impessoais determinam a vida de cada indivíduo.
Ainda assim, o tema da literatura, distinto do da história, são sobretudo as pessoas concretas. Daí que a literatura de guerra consista numa perpétua oscilação entre a uniformidade do movimento coletivo e a singularidade da experiência individual. A dificuldade está quase sempre em achar um ponto de equilíbrio entre duas séries desiguais de fenômenos.
O modo como "Guerra em Surdina" resolve essa dificuldade define também o caráter do livro. O personagem central, essencialmente autobiográfico, participa da guerra por convicção, ao contrário da maioria de seus companheiros. Sua preocupação é entender como homens convocados a contragosto para uma guerra que não consideram sua transformam-se num exército de verdade -e lutam.
As diferenças de motivação do observador e dos observados não apenas garantem ao livro uma pergunta contínua e original, como lhe permitem o esmiuçamento de outras questões.
Embora ajude a entender a narração em painel de "Guerra em Surdina", isso não explica o porquê da escolha de cada questão, algo que deve ser buscado no caráter do narrador. Há nele uma espécie de timidez entranhada, um pudor em falar de si mesmo, exceto quando o esclarecimento de acontecimentos relevantes o impõe.
Assim, é o próprio narrador que oscila entre a relevância das circunstâncias históricas que descreve e a certeza de que, se ele tem algum papel importante, este só pode ser o do observador. De um observador que, aliás, não se sente no direito de julgar, e que, reproduzindo tudo a que teve acesso com o máximo de exatidão, delega o julgamento aos leitores.
Essa opção determina o ritmo da narrativa. Embora seu tema seja a guerra, o que menos se encontra nele é ação no sentido convencional ou esperado, e só se registra o primeiro disparo depois da metade de um livro que, apesar de se organizar como ficção, trata-a com extremo pudor e repele qualquer recurso à retórica literária.
Nada mais apropriado nele, portanto, do que a idéia de uma guerra em surdina, do registro dos ecos amortecidos da guerra de fora sob a forma de uma incessante batalha íntima contra o tédio e o desânimo, pela manutenção da lucidez observadora. (Nelson Ascher)

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