São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Com a morte entre as mãos

"Mina R" relembra a guerra em 15 minutos de ação

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O soldado Sílvio era adepto da única coisa que interessa a um soldado -sobreviver-, e foi claro no aviso: ``Fica bobo aí que o jacaré te abraça, cabo velho".
O ``cabo velho", Roberto de Mello e Souza, sobrenome patrício que seria lícito esperar de um oficial, não de um subalterno, estava tentando fazer o que era proibido: desarmar uma mina antitanque que os aliados americanos tinham dito que era perigosa demais. ``Deve ser sempre destruída no lugar", dizia o manual americano.
O resultado dessa tentativa, ``Mina R", é um dos grandes romances brasileiros sobre a guerra, com a mesma força que tem ``A Retirada da Laguna" -sobre outra rara guerra, em outro raro país estrangeiro, em que raros brasileiros estiveram.
Irmão do crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza, ele é autor de vários livros sobre administração de empresas e de um novo romance, ``Pão de Cará", a ser lançado em breve. ``Mina R" está sendo relançado pela Record. A primeira edição é de 1973.
``Minha mãe, bem relacionada, conseguiu `quebrar o galho', conseguiu minha transferência do 6º Regimento de Infantaria para o 38º Batalhão de Caçadores, aqui no parque dom Pedro 2º. Eu rasguei o papel da transferência e por isso fui para a FEB", diz ele.
Geraldo Vidigal, professor da Faculdade de Direito da USP e outro febiano, escreveu dele: ``Roberto tinha vocação para herói. Perseguia as oportunidades de patentear bravura. Ansiava pelo perigo e induzia os que estavam próximos a segui-lo".
O resultado foi ``Mina R".

Folha - Por que alguém que foi da FEB decidiu escrever um romance, e não um livro de memórias, como é mais comum?
Roberto de Mello e Souza - Este livro, embora tenha o feitio e a fatura de um romance, é positivamente autobiográfico. São de fato as minhas memórias de guerra. Em 72, vinte e poucos anos depois que eu voltei, é que me deu a intuição de como deveria escrever esse livro e porquê. Eu desarmei na guerra uma mina que era proibido desarmar, chamada exatamente mina R.
Folha - "R" queria dizer o quê?
Mello e Souza - Fiquei sabendo há pouco tempo atrás. Um oficial, também do 6º Regimento, o Mário Amaral, me deu um caderninho, distribuído entre os oficiais, onde tinha a mina R, que vem de Riegel, que quer dizer "ferrolho". E, de fato, ela era trancada, tida como "indesarmável".
O comandante do meu pelotão, tenente Monteiro, me disse: "Olha, apareceu uma mina nova, você tem que explodir ela com um bloquinho de TNT ou puxar com cabo de telefone, mas nunca tente desarmar. Eu, meio de bravata, falei para ele: "A primeira vez que eu encontrar essa mina eu vou desarmar". Ele deu um risinho, assim, gaiato.
Folha - Em que época?
Mello e Souza - 20 de abril de 1945. Então eu finalmente dei de cara com as minas R. Peguei o pessoal do meu pelotão, mandei se abrigarem, porque sabia que a mina era muito perigosa e não queria pôr em risco a vida deles.
Folha - É o que faz o cabo Lourenço no livro.
Mello e Souza - O livro é tratado em duas pessoas, na primeira e na terceira, que sou eu.
Folha - Por que isso?
Mello e Souza - Meu irmão do meio, o Miguel, quando a gente era menino e inventava história de aventura, uma vez fez essa pergunta: quando você pensa nas suas aventuras de mocinho, de guerra, de Idade Média, você se chama de "eu" ou de "ele"? Eu comecei a reparar e percebi que a gente se chama de eu e de ele. Às vezes, quando eu estava conquistando a menina, ou derrubando a fortaleza, falava "eu" fiz isso, ou então "ele" chegou montado em seu cavalo. Assim, achei que esta seria uma forma curiosa de narrativa.
Folha - O que o outro irmão, Antonio Candido, tem a dizer sobre isso?
Mello e Souza - Eu mostro quase todos os meus livros para ele. Digo "quase todos" porque houve um ou outro livro de administração que não mostrei, porque não era do interesse dele. "Mina R" eu mostrei. Ele achou que o livro era muito bom e me deu uma dica muito boa, porque o livro ia correndo e, de vez em quando, entrava nuns flashbacks. Por que o flashback?
Folha - Aliás, a cronologia do livro é completamente doida, as ações no vale do Serchio, no vale do Reno etc. estão fora de sequência.
Mello e Souza - Porque chegar naquela mina foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Eu tinha que tocar com a minha esquadra, limpando o terreno, porque os tanques americanos vinham vindo e eu não podia ficar parado ali. O livro inteiro se passa em 15 minutos. Foi o tempo que eu levei para desarmar a mina R.
Folha - Eu levaria 15 minutos só pensando para onde fugir...
Mello e Souza - (risos) Sabe, eu estava segurando a morte na mão. Eu tinha consciência clara disso, mas não tinha medo. Eu morria de medo de bombardeio de artilharia, mas de mina eu não tinha medo. Minha vida me passou pela cabeça naqueles 15 minutos. A minha cabeça ficou um tumulto, veio coisa da minha infância, de tudo.
Esse livro foi escrito em três dias, no carnaval de 72. Minha mulher levou minha filha aos bailes e eu, que sempre a acompanhava, fiquei em casa e escrevi o livro num jorro.
Folha - O livro é um dos raros romances sobre a FEB; a maioria preferiu fazer um depoimento pessoal.
Mello e Souza - Sobre a guerra, você tem um livro capital, que é o ``Depoimento dos Oficiais da Reserva". Conheci alguns de seus 16 autores, como o Túlio Campello, que perdeu uma perna num campo de mina que estava sendo clareado pela 1ª Esquadra do meu Pelotão. Eu estava tirando minas na estradinha de Braine. Foi das poucas vezes que eu tive medo de mina.
Folha - Como é possível a alguém nunca ter medo de mina?
Mello e Souza - Não sei te explicar. Não é porque eu seja bravo ou herói. Eu literalmente morria de medo, de bombardeio de artilharia principalmente. Eu tinha feito a escola de minas do Batalhão de Engenharia americano, e fui tão bem que os americanos me seguraram como instrutor da segunda turma.
Folha - O senhor já se perguntou se tem algum problema na cabeça?
Mello e Souza - Eu não sei, rapaz. Se eu fosse um valentão... Mas eu sou um cara superpacífico. Talvez porque tenha sido um menino muito medroso, que tinha medo de escuro. Acho que precisava de auto-afirmação. E também porque eu e meus irmãos brincávamos muito de coisas heróicas.
Folha - O livro cita o romance "Beau Geste'.
Mello e Souza - O "Beau Geste" era para nós um romance muito querido, porque tem três irmãos. Beau era o Antonio Candido, Digby era o Miguel e John era eu. Nós fomos criados em uma época em que a guerra era endeusada. Eu era pequeno, tinha 7 ou 8 anos de idade. Viajando pela Europa com minha família, vi o enterro do general Foch, que foi o grande herói da guerra de 14. Aquela coisa maravilhosa desfilando pelo Champs Elysées, zuavos, spahis, soldados de infantaria, os reis, o cavalo dele sozinho com um manto de veludo negro de estrelas -isso incutia muita ansiedade de bravura.
Folha - George Orwell, na guerra da Espanha, viu uma vez um desfile com bandeiras e tudo e disse que aquilo dava a imagem perniciosa de que a guerra era uma coisa magnífica.
Mello e Souza - Perniciosa -é exatamente o termo. A gente endeusava muito a guerra. Os irmãos Geste eram a Legião Estrangeira, que nós achávamos a coisa mais bacana do mundo. Essa necessidade de afirmação de coragem -não digo nem de bravura, mas de bravata- foi o que me levou a desarmar a mina R. Mas eu de fato não tinha medo. Não me pergunte por quê, porque eu não sei o que é. Essa mina não estava na estrada, então não era da minha conta, mas o fato é que eu a desarmei.
A FEB foi muito bacana. É uma pena que se fale tão pouco do soldado brasileiro. Essa caboclada -um operário, outro cavador de enxada, outro carregador de estação, uma gente humilde- chega lá e dá um recado bacana. É é uma coisa que te envaidece. Que te dá orgulho.

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