São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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As epifanias do front

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Roberto de Mello e Souza opta por uma narração diferente da de Boris Schnaiderman. O fato de, ao contrário deste (que serviu na artilharia), ter estado no front, envolvido diretamente nos combates, não dá conta, por si só, das diferenças. Que "Mina R" tenha sido escrito uma década depois de "Guerra em Surdina" talvez ajude a explicar um pouco, mas a questão é que, partindo de acontecimentos semelhantes, cada um dos autores procura algo distinto.
Se o livro de Boris se desenrola em rigorosa cronologia, Roberto escreve uma narrativa em que tudo é simultâneo. Se o personagem do primeiro é alguém que vê, o do segundo sobretudo sente. Aquele chega ao conflito íntimo como um observador externo; este relata a guerra de fora, como uma experiência mais que pessoal, sensível.
Não há, portanto, outra ordem que a da relevância de cada evento para o narrador. Este, um perito em minas, está durante toda a narrativa envolvido com um novo dispositivo explosivo, a mina R, que não se sabe como neutralizar. No meio dessa operação, que equivale a uma concentração do tempo, surgem recordações, quadros, impressões. Elas não se hierarquizam temporal ou espacialmente, de modo que, por exemplo, um companheiro morto pode reaparecer nas páginas seguintes.
Como no livro de Boris, o ponto de fuga deste painel é o da fadiga, só que, nesse caso, mais propriamente física. O narrador de "Mina R" é, de certa forma, mais romântico, na medida em que registra algumas pequenas epifanias às quais o outro se fecha.
Roberto é também mais explicitamente literário, pois, se "Guerra em Surdina" se define por uma técnica de recusas, "Mina R" lança mão de um lirismo preciso e adequado a seus objetivos. Enquanto uma obra adota uma linguagem descarnada para mostrar até que ponto momentos de exceção acabam sendo vividos como rotina, a outra, através de uma intensificação do discurso, revela como, em determinadas circunstâncias, até mesmo os detalhes mais técnicos de um mecanismo se revestem de relevância pessoal. E se Boris é consistente no uso da terceira pessoa, Roberto transita entre esta e a primeira como um modo de prismatizar a imersão de seu protagonista na narrativa.
Cada uma das obras exibe preferencialmente um aspecto da experiência da guerra, um aspecto que, embora não ausente, é secundário na outra. Seria curioso imaginar uma intercâmbio entre os dois protagonistas/narradores, pois o provável é que cada um se admirasse ao reconhecer sua própria experiência na tradução fiel de uma outra sensibilidade. (Nelson Ascher)

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