São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os restos da festa

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas últimas semanas a derrota dos petroleiros foi comemorada pelo governo e pela maioria da imprensa como um passo adiante na modernização do Brasil.
O que é modernização? Nos discursos oficiais, modernização significa integração do país na economia internacional capitalista. Brasileiramente traduzido, isto que dizer: redução do tamanho ou eliminação das estatais; quebra de monopólios; incentivo à competição entre empresas comerciais e industriais; aumento da produtividade; privatização de todo e qualquer serviço público que dê lucro às empresas etc.
O que se espera da modernização? Também de acordo com os discursos, que haja aumento das riquezas com a consequente melhoria do nível de vida de todos. De fato, pode-se admitir facilmente que muitas estatais brasileiras são ineficientes; que o corporativismo de certos sindicatos e associações trabalhistas entrava o progresso político-social; que os monopólios são práticas econômicas obsoletas e que a iniciativa privada pode contribuir para o desenvolvimento tecnológico.
Tudo isto foi sobejamente dito, mostrado e comentado, sobretudo depois que os regimes comunistas desabaram. É o lado Giotto, Botticelli e Fra Angélico da pintura. Vamos ao lado Bosch, Grosz, Dix ou Schlichter. Ao lado que vem sendo escondido ou quase silenciado. Quem ou o quê, nesta euforia neoliberal, vai ocupar-se das consequências da ``integração do Brasil no mundo civilizado"? Quem se responsabiliza pelo desemprego, pela violência urbana, em suma, pelos esquecidos da ``modernização"? Ou será que os mentores das mudanças brasileiras realmente acreditam que tudo isto é catastrofismo e que o mundo um dia repetirá ``um, dois, três, mil Japões"?
Mas como, se para um Japão já existem dezenas de Europas e Estados Unidos e centenas de Américas Latinas! A saída, então, é confiar no futuro, enquanto o crescimento não chega? Até quando? Até um dia; até talvez; até quem sabe? Mas, até lá, o que fazer, por exemplo, com a barbárie de cada dia? O que fazer quando 19 assaltantes são mortos no Rio, em duas semanas, e mesmo as melhores consciências, em transe diante do medo da brutalidade, já não sabem dizer se é bom ou ruim matar bandidos!
O que fazer quando 92,83% das crianças assassinadas em São Paulo nem sequer forneceram o pretexto do delito que pudesse justificar o horror da matança! O que fazer de um povo que desperdiça 10% de seu produto interno bruto com a segurança privada de pessoas ou empresas; que paga R$ 100 de salário mínimo e que despende em educação, cultura, pesquisa científica ou arte menos da metade do que gasta em proteção contra assaltos, roubos, sequestros etc!
Qual a receita neoliberal para isto tudo? Isto não é da competência da iniciativa privada, dirão os donos do comércio. Então de quem é? Do Estado? Qual Estado? O Estado que se quer reduzir a corretor de interesses privados? Ou o Estado que ameaça petroleiros com intervenção armada enquanto ``pede" às multinacionais que sejam boazinhas, compreensivas e enviem menos lucros para suas matrizes no exterior?
Ou o Estado que afaga os novos coronéis ruralistas, que, com uma arrogância colonial, deixam uma reunião com os altos escalões do governo anunciando, para quem quiser ouvir, que não vão pagar o que devem, já que pensam que cofre público existe para financiá-los, como o faz qualquer burocrata corrupto do ``caduco" Estado que se quer desmontar? O Estado, onde está o Estado de todos e para todos?
Para muitos isso é pura retórica esquerdista ou uma manobra destrutiva do ``diabo", como prefere o prefeito do Rio, referindo-se aos partidos políticos que lhe fazem oposição. Para outros, felizmente, isto é sinal de quem nem todos somos descerebrados? Será que, realmente, nossos governantes e economistas acreditam que a Lei do Mercado e sua ``mão invisível" resolvem injustiças sociais e desprezo pela vida humana? Confesso que, às vezes, é difícil saber onde pára a credulidade e começa o cinismo.
O que banqueiros, especuladores e industriais multinacionais têm a ver com o sofrimento e a miséria de nossos pobres ou com o inferno de nossas vidas nas grandes cidades brasileiras. Nossas elites governantes não nasceram ontem. A maioria delas passou pelos lustrosos bancos das universidades européias e americanas e sabe muitíssimo bem o que um branco europeu ou americano, especialmente quando rico, pensa da ``massa" de ``mestiços preguiçosos", ``estúpidos", ``corruptos" e ``incapazes", que vive abaixo do equador.
Alguém pode me dizer quantas lágrimas um especulador de Manhattan ou um banqueiro suíço já derramaram por um menor assassinado no Brasil; por um esquálido garoto da Somália ou pela multidão que, diariamente, é dizimada em Ruanda ou Uganda pela fome, pela Aids ou por outras doenças infecto-contagiosas?
Isso faz parte ou não da internacionalização dos preços, da globalização dos mercados, da livre concorrência, da revolução informática dos serviços etc? Economia, iniciativa privada e modernização são ``inocentes pilatos" nesta história? Então, para que servem? Para engordar os bolsos de uma minoria ensandecida que não hesita, um só segundo, em jogar-nos todos na miséria moral e material, desde que o lucro esteja garantido? Exagero?
Pois bem! Nossos modernos governantes e economistas podem apontar quais as cidades ocidentais, ricas ou pobres, que não exibam seus exércitos de mendigos, desocupados e marginais, todos filhos do milagre econômico neoliberal? Podem apontar quantas cidades ocidentais, ricas ou pobres, podem passar sem cocaína, tranquilizantes, hipnóticos e antidepressivos, consumidos numa escala crescente e avassaladora? É esta a vida que queremos? É este o sonho de justiça, igualdade e liberdade com que sonhamos, pelo menos, durante 200 anos, desde que a democracia renasceu no Ocidente?
Por que tudo isto tem que se esfarelar nas mãos de meia dúzia de irresponsáveis que, estupidamente, acreditam poder escapar ilesos do desastre global que vêm arquitetando? Será que é tão difícil ver que interesse econômico privado, livre do controle político do Estado, exercido em nome do bem comum, nunca vai ter outro compromisso a não ser com lucro?
O que sobra disso tudo está à mostra: somos animais de crenças que podem acreditar em qualquer coisa, por mais mesquinha, absurda e obtusa que seja. Já acreditamos em escravagismo, nazismo, stalinismo, e na ``santidade" da Santa Inquisição. Agora acreditamos que o Deus Mercado, como disse Sader, vai transformar lucro em respeito à vida e à dignidade dos seres humanos. Só espero que tenhamos a chance de, em breve, olhar para trás e dizer que toda essa festa neoliberal foi só e infelizmente muito barulho por nada. Podemos sempre sair em busca do tempo perdido.

Texto Anterior: Peregrinação mágica por uma terra dizimada
Próximo Texto: O horizonte imprevisto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.