São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Peregrinação mágica por uma terra dizimada

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Terra Sonâmbula", de Mia Couto, narra a perambulação do velho Tuahir e do jovem Muidinga nas terras dizimadas pela guerra civil que esfacela Moçambique há quase 20 anos.
O livro começa quando eles resolvem fazer morada em um ônibus destruído pelo fogo, numa estrada, e encontram ali os diários de um rapaz chamado Kindzu.
O que Couto articula, em capítulos rigidamente intercalados, é a soma desses diários com as andanças da dupla.
Para erguer ficção em um cenário desencantador como esse -onde a realidade é tão insuportável quanto, paradoxalmente, inverossímil-, nada mais apropriado, conclui Couto, do que o conhecido realismo mágico.
À moda de autores latino-americanos que "surgiram" internacionalmente nas décadas de 50 e 60 -Gabriel García Márquez à frente-, reproduzem-se aqui, em território africano, episódios fantásticos, não se sabe se frutos do delírio ou de situações verdadeiramente surreais.
Um boi, apaixonado por uma garça, vira pássaro; um homem vira semente; a estrada se movimenta aos olhos dos homens; um morto (colono português) ressuscita...
Mas Mia Couto, moçambicano nascido em 1955, acrescenta a esse pelo menos mais quatro ingredientes de destaque na construção de seu belo romance de estréia, publicado inicialmente em Lisboa, em 1993.
O primeiro é um lirismo sutil e comovente. Veja este trecho:
"Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como são nossos olhos que fazem o belo. Meu estado de paixão puxava um novo lustro àquela terra em ruínas. Aquelas visões, dias antes, já tinham estado em meus olhos. Porém, agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembléia de belezas".
O segundo é um cuidado bem-sucedido com a linguagem, desde o uso intenso de palavras-cria, como anjonautas, brincriação ou patifaristando, até construções como "a noite, às tantas, recebeu as despedidas, na cervejaria foram crescendo as cadeiras", passando pelo uso de expressões locais -chissila, xipoco etc.-, devidamente traduzidas em notas de rodapé.
Soma-se a isso o tom lúdico, para o leitor, criado a partir de um certo suspense que Mia Couto introduz por conta de desafios enfrentados por Muidinga e por Kindzu em suas peregrinações sem fim.
E, em quarto lugar, os elementos de "romance de formação", já que os dois jovens, um nos cadernos, outro nas estradas, evoluem paralelamente, confrontando suas misérias e suas iniciações.
"Uma coisa a guerra faz acontecer: tudo vai se tornando verdade", afirma Kindzu em seu quarto caderno. "Não confie em homem que não sabe mentir", ouve Muidinga do velho Tuahir.
Mia Couto, que é também jornalista e já publicou contos e poemas, sabe "mentir com muita elegância em "Terra Sonâmbula".
Por isso, não obstante a tristeza e a melancolia que se espraiam por todo o livro, conquista com maestria a atenção e a confiança do leitor.

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