São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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`A vida é fronteira do caos; o poema é constelação resgatada do acaso'

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 16/07/95
No Mais! de 9/7, à pág. 5-13, na transcrição de trecho da palestra do poeta Haroldo de Campos, leia-se "A revolução baudelaireana passou-se no espaço da forma fixa, do soneto...", onde está escrito " física"; leia-se " corpos menores, corpos maiores...", onde está escrito " cópias"; leia-se "a vida... é um enclave de ordem que suspende...", onde está escrito sustenta.
`A vida é fronteira do caos; o poema é constelação resgatada do acaso'
O acaso é um constante desafio do homem, na medida em que o homem vive uma espécie de dialética entre acaso e necessidade. Desde o começo de minha atividade -meu primeiro livro foi publicado em 1950-, eu tenho me voltado muito sobre a poesia daquele que eu considero o Dante da Era Industrial, que é Mallarmé.
O poema que traduzi para o português, as minhas primeiras tentativas de tradução, começaram a ser feitas em 1958: ``Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso" era, exatamente, esse poema. Enquanto na ``Divina Comédia", de Dante, nós temos um mundo hierarquizado, de acordo com a teologia tomista, com a passagem do homem do inferno para o purgatório, e daí até o paraíso, em Mallarmé, temos exatamente o contrário. Mallarmé, nesses poemas de 1897, prefigurou praticamente o mundo da física moderna.
O tema básico, o tema cosmológico desse poema, é a luta do homem com o acaso. E nessa proposta, de que um lance de dados jamais abolirá o acaso, a não ser por um breve momento, fugaz, que ele imagina como sendo uma constelação, estará a idéia de vida, estará a idéia daqueles organismos que realmente conseguem, por breves, por fugazes momentos, suspender a marcha irreversível da entropia e, portanto, de certa maneira, resgatar a ordem do acaso, um cosmos do caos. (...)
Baudelaire, como dizia muito bem Walter Benjamin, era o poeta moderno por excelência. A revolução baudelaireana passou-se no espaço da forma física, do soneto, do verso clássico. A implosão baudelaireana dá-se no nível da semântica, das construções alegóricas. Quem, realmente, fez com que esta forma fixa explodisse e, portanto, rompeu essa modernidade, cujo ápice está em Baudelaire, passando para uma fase de pós-modernidade, foi Mallarmé, com ``O Lance de Dados".
O poema é espacializado, disposto no espaço da página como uma partitura, é rompida a métrica do verso, dispersa a forma fixa, o verso é escandido, como uma partitura musical e com um jogo de recursos tipográficos. Além do tema ser a luta do homem com o acaso, há também uma revolução na física do poema. Quase eu diria: na microfísica do poema, desde o estudo de formas as mais variadas de tipografias, cópias menores, cópias maiores etc. -tudo isso, essa rede constelar de elementos que Mallarmé, já é a abertura da pós-modernidade. E é com Mallarmé que dialogam as correntes posteriores. (...)
Manuel Bandeira talvez seja o dono da dicção mais sutil da poesia moderna brasileira. É um poeta que, dentro de uma aparente simplicidade, joga com uma requintada e sofisticada sutileza. Bandeira tem um poema lindo, ``Preparação para a Morte", que eu analisei exatamente usando a entropia, o problema da entropia, da morte térmica. ``A vida é um milagre/ Cada flor com sua forma/ Sua cor/ Seu aroma/ Cada flor é um milagre/ Cada pássaro com sua plumagem/ seu vôo/ seu canto/ cada pássaro é um milagre./ O espaço infinito/ o espaço é um milagre./ O tempo infinito/ O tempo é um milagre/ A memória é um milagre/ A consciência é um milagre/ Tudo é milagre/ Tudo, menos a morte/ Bendita a morte que é o fim de todos os milagres." A morte térmica, esse processo fatal da entropia que sempre cresce... parece-me que ele fez realmente a transposição analógica desse problema para a poesia.
A vida está na fronteira do caos, num certo sentido. Ela, a vida, seria, se nós fôssemos formulá-la de acordo com aquele poema do Manuel Bandeira, um enclave de ordem que sustenta, por um determinado momento, essa morte térmica.
Há uma dialética entre o acaso e ordem. Quer dizer, o poema é a constelação, a constelação é resgatada do acaso. A vida é um enclave de ordem num universo fadado à morte térmica, à entropia.

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