São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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`A ciência já está crescida para ver como o acaso é fundamental'

LUIZ CARLOS DE MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O acaso é uma base de independência, de liberdade, no fundamento da matéria, se se quiser assim. Ter compreendido isso foi um passo muito importante para a física. Talvez, de uma perspectiva mais primitiva, quase arrogante, se possa pensar no acaso, nesse movimento imponderável, incontrolável, da base material como uma capitulação, porque, onde há o acaso, nós não teremos podido controlar.
Mas isso não é só pouca humildade: é pouca inteligência. É pretender que bom mesmo é estar tudo amarrado e sob controle. Eu acho que a ciência já está crescida para perceber, sobretudo ao longo deste século, o fundamental desse imponderável.
Lidar com esse acaso é parte da lógica da ciência -e não negar esse acaso. Toda vez que você imagina uma lógica de ferro, que procure submeter o acaso, você tem uma arrogância burra, por assim dizer. (...)
A visão antiga, que hoje eu creio já estar ultrapassada, é de uma antinomia entre desordem e ordem -e o pensar o conhecimento como um civilizar, um botar ordem, alinhar a natureza. A visão rica não é a da antinomia entre ordem e desordem, mas da dialética entre ordem e desordem, do movimento da desordem. O movimento que desordena também ordena. (...)
Suponha um copo d'água, ainda que esteja em absoluto repouso: o que se crê é que cada átomo esteja o tempo todo mudando de configuração. Há uma miríade de configurações microscópicas, que correspondem à mesma configuração que a gente enxerga, e que a natureza está visitando todas as configurações possíveis ao acaso, completamente ao acaso. O acaso é uma hipótese fundamental para a compreensão da matéria. Quanto mais estados esse sistema tenha para visitar, menos ordenado ele está. Se você tiver um sistema que só tenha um estado para ficar, ele está completamente parado, e isso corresponde ao zero absoluto, o mais frio dos frios. Quando se vai dando energia ao sistema, ele pode visitar outros estados, adquirir outras excitações, e, ora esse átomo, ora aquele, ora um terceiro, este terá mais energia do que o outro, e os estados estão sendo visitados ao acaso o tempo todo.
Quanto mais estados ele pode visitar, ou seja, quanto mais energia ele tem, menor é a sua ordem, maior é a entropia. A entropia é uma função desse número de estados que podem ser visitados. A entropia é a medida da desordem, não é a medida do acaso. O acaso está na base da sua definição. O acaso é parte da nossa compreensão da natureza e da matéria. (...)
Paulo Vanzolini fez um samba chamado ``Tempo Espaço". É assim: ``Tempo e espaço confundo/ E a linha de mundo é uma reta fechada". Ora, ``linha de mundo" foi como ele traduziu para o português a palavra ``geodésia", que é a expressão grega para a reta generalizada da Teoria da Relatividade Geral de Einstein. E ``tempo e espaço confundo" é a ligação, a inter-relação do espaço-tempo da relatividade de Einstein. E ``linha de mundo é uma reta fechada" é como a expectativa de que um raio de luz, por conta de um universo fechado, fizesse um círculo. A geodésia, nesse caso, fecha. Ele abre o samba com essa visão cosmológica. (...)
A física do começo do século para cá é sobretudo uma física das grandes harmonias, do pensar o conjunto, a harmonia do conjunto, e, portanto, uma física muito mais oriental, fundada na idéia de estética e de harmonia do que na idéia de intervenção e de causalidade.

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