São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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A paradisíaca idéia liberal

LEDA MARIA PAULANI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O professor Eduardo Gianetti, em artigo publicado nesta Folha em 21 de maio, analisa a entrevista concedida por Jürgen Habermas a Bárbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet (caderno Mais!, 30/4/95) para chegar a duas conclusões: a) as palavras de Habermas indicam de forma inconteste as transformações pelas quais vem passando o "pensamento da esquerda" (sic) (transformações, sugere o articulista, resultantes do triunfo inapelável do capitalismo: desde a queda do muro, tudo estaria caminhando singelamente para o paradisíaco mundo liberal da sociedade de mercado); e b) das revelações de Habermas sobre sua história intelectual, em particular as de seu arrependimento por não ter sido economista, é possível deduzir, de um lado, a supremacia da ciência econômica e, de outro, uma espécie de "mea culpa" do mesmo "pensamento da esquerda", o qual reconheceria, nas raízes marxistas, a fonte de inúmeros equívocos.
Nem só de conclusões e frias análises, contudo, é feito o artigo do prof. Gianetti. Na verdade, ele é cheio de sutilezas e manhas argumentativas, que denunciam o talento indiscutível de um retórico excelso. Por exemplo, ele assevera que boa parte da notoriedade de Habermas se deve ao fato de que "algo obscuro e ininteligível é geralmente levado mais a sério e visto como mais profundo do que algo claro e inteligível", afirmação capciosa, que redunda em chamar boa parte da intelectualidade, brasileira ou não, de "deslumbrada".
Em outro momento, ele não se contém e maliciosamente assinala, quero dizer psicanaliticamente, o pequeno desencontro que houve entre Habermas e seus entrevistadores brasileiros; de anedótico, o fato salta para a digna posição de argumento suficiente para desqualificar integralmente a Teoria do Agir Comunicativo.
Finalmente, para somar apenas mais um exemplo, dentre tantos que lá se podem encontrar, da tarimba do prof. Gianetti na arte da persuasão, ele inverte propositadamente uma afirmação de Habermas. Diz ele: "Estudei economia durante três semestres e, depois, esqueci tudo. Foi então que estudei Marx". Para o articulista, no entanto, Habermas teria dito que perdeu o rumo da economia desde o momento em que começou a estudar Marx. Como se vê, o prof. Gianetti está aqui a fazer coro, por vias inusitadas, com a moda da retórica que aportou na economia pelo início dos 80.
Mas deixemos ao analista literário interessado em recensear as convenções do jovem gênero "econômico-ilustrado" o tom do bom senso inglês (estilo "meu mundo é meu jardim"), admiravelmente casado ao ponto de vista do célebre topos do "puer senex ("idéias revolucionárias, eu também as tive no meu tempo!"), tudo numa prosa de poltrona imperturbável, com fumaças de cachimbo e erudição.
Habermas não pode mais ser considerado marxista, pelo menos desde 1981. É justamente com a Teoria do Agir Comunicativo, lançada quase uma década antes da queda do muro de Berlim, que Habermas abraça explicitamente o chamado "paradigma da linguagem", constituindo, aliás, com tal teoria, uma de suas principais vertentes.
É também nessa obra que Habermas critica Marx por não ter percebido o intrínseco valor evolutivo que possui a economia de mercado, bem como sua superioridade frente às sociedades estatalmente organizadas. E faz essa crítica assentado no novo paradigma, o que indica, para dizer o mínimo, que ele abandonou o "paradigma da produção", velho modelo de inspiração marxista. Habermas pode ter sido herdeiro da Escola de Frankfurt, mas, já nesse momento, tem muito pouco a ver com ela.
É sumamente estranho, portanto, enquadrar Habermas numa suposta "tradição dialética pós-marxista". Seja lá o que isso for, Habermas seguramente não faz parte dela; aliás, dizem alguns, tidos decerto por jurássicos, que é justamente esse o seu maior problema. De modo que, se o discurso de Habermas é opaco, tortuoso e impenetrável, não se deve isso à dialética. Nessa última, aliás, pelo menos na de linhagem hegeliana, a obscuridade, isto é, a recusa em expressar positivamente determinados objetos, tem um lugar claramente, e racionalmente, delimitado.
O prof. Gianetti estabelece ainda, de modo um tanto simplista, uma vinculação de um para um entre a "tradição que vai de Hegel a Habermas" e a crítica ao capitalismo. Já indicamos alguma coisa sobre esse equívoco, no que tange a Habermas, cujas proposições, de resto, têm uma interface evidente com a teoria econômica de origem austríaca, particularmente com o mundo hayekiano.
Cabe lembrar agora, como alerta Adorno no prefácio da "Minima Moralia", que também Hegel tinha grande afeição ao pensamento liberal, que aprendera com Adam Smith, e que tal afeição é correlata de sua dialética: nela, a primazia da noção de totalidade redime, como o faz na "Riqueza das Nações" a "mão invisível', a complexidade dos antagonismos individuais. Hegel, assim como Habermas, pode fornecer bons argumentos para as teses liberais, pelas quais tanto se bate o prof. Gianetti!
Tudo isso, em suma, para dizer que não se pode desavisadamente colocar no mesmo caldeirão o pensamento marxiano e a dialética de Hegel, o iluminismo habermasiano e a Escola de Frankfurt. Como não se cansa de lembrar Mc Closkey, o nosso economista-retórico de plantão, "a vida não é tão simples".
Consideremos agora o "mea culpa". Para o prof. Gianetti, haveria um tom de sincero arrependimento marcando as palavras de Habermas, arrependimento por não ter estudado economia, mas também por ter abraçado teses equivocadas graças à sua filiação inicial ao marxismo. Dentre elas a de que, qual vampiro, o Primeiro Mundo precisaria da miséria do Terceiro para ostentar seu elevado padrão de vida.
A despeito de usualmente vincular-se tal tese ao "pensamento da esquerda", não é ela tão familiar a essa corrente. Não está, por exemplo, em Lênin, para quem imperialismo é sinônimo de exportação de capitais, não de miséria, a menos, obviamente, daquela inerente ao sistema enquanto tal.
Não está em Marx, para quem o capital tem sempre uma ação civilizatória, no sentido material, mesmo que ele se imponha pela força, como já acontecia à sua época com a Índia.
Não está nem sequer em Rosa Luxemburgo, cujas teses subconsumistas implicam um Terceiro Mundo guarnecido de poder de compra suficiente para fornecer mercado ao Primeiro.
Não está, por fim, nem na Teoria da Dependência, de lavra caseira, e aí equivoca-se o próprio Habermas: não se pode esquecer que a obra do famoso FHC nasce primordialmente como crítica às teses cepalinas e, por conta de fornecer-lhes o necessário substrato sociológico, acaba por contestar-lhes as conclusões, indicando a possibilidade de um vigoroso dinamismo capitalista, mesmo nos marcos do subdesenvolvimento.
Se as teses vampirescas têm assim algum parentesco com o "pensamento de esquerda", resume-se ele às proposições seminais da Cepal, acerca da deterioração dos termos de troca, e às infelizes, porém demasiadamente difundidas, teses da troca desigual.
Não se conclua daí, porém, que podemos nós, desgraçadamente instalados no Terceiro Mundo, aceitar com fleuma britânica a "salutar", como quer o prof. Gianetti, sentença sumária de Habermas, de que "o Primeiro Mundo" pode sobreviver perfeitamente sem o Terceiro.
É verdade, e não podemos senão cumprimentar o Primeiro Mundo por mais esta proeza, mas, que fazemos nós com nosso capitalismo de terceira categoria? De que nos servem as belas proposições de Habermas, se a violência e a miséria ameaçam cada vez mais nossa frágil civilização? Que papel nos caberá na aldeia global que se articula? Teremos algum grau de liberdade? Quem responderá a essas questões? Será por acaso a tão superior ciência econômica?
Parece difícil. Sua atual supremacia não é senão o correlato da marcha triunfal do capital, que, agora, ainda mais do que antes, desconhece barreiras espaciais, temporais, culturais ou geopolíticas. Como recentemente declarou outro mestre de nossa periferia, numa expressão literalmente lapidar, o capitalismo continua aí, empilhando vitórias.

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