São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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O avião que reinventou o vôo

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O 14-Bis de Alberto Santos-Dumont, o Boeing 747 levando centenas de turistas a Miami ou o caça F-16 patrulhando a Bósnia tem algo em comum: a forma das asas e a maneira de usá-las para voar. Até agora foi assim.
O X-31, um revolucionário avião germano-americano, está reiventando o modo de voar, usando suas asas de um jeito que faria todos os outros entrar em parafuso.
O novo jeito de voar é tão radical que ele na verdade aproveita essa situação desesperada, a queda, para adicionar maior manobrabilidade ao avião. É o chamado ``vôo pós-estol".
A palavra ``estol" costuma ser um palavrão para pilotos de aviões. Ela significa aquele momento em que, por alguma mudança na posição do avião, ocorre uma diminuição da sua velocidade em relação ao ar, seu peso se torna maior que a força de sustentação das asas e ele cai em parafuso.
Isso acontece porque voar é sempre uma maneira engenhosa de enganar a natureza. Uma aeronave mais pesada que o ar voa porque consegue reduzir a pressão do ar sobre a parte de cima da asa graças à sua forma -curva por cima, reta por baixo.
O ar que vai por cima leva mais tempo para passar pela asa do que aquele que tomou o caminho mais reto, por baixo. Isso produz a diferença de pressão que faz o avião levantar do solo. Essa mesma forma, ``aerofólio", de cabeça para baixo, serve para manter os carros de corrida colados ao chão.
Para o avião se manter em vôo ele tem de evitar que essa sustentação das asas desapareça. Isso pode acontece se ele levantar demais o nariz e não tiver uma velocidade adequada.
A posição das asas é o X da questão. O termo técnico que define os limites a serem quebrados chama-se ``ângulo de ataque" -é simplesmente o ângulo entre a asa e o fluxo de ar. O ângulo-limite no vôo convencional é 30 graus. O X-31 pretende explorar a possibilidade de voar entre 30 graus e 70 graus de ângulo de ataque.
Essa façanha só é possível graças a supercomputadores capazes de simular as complexas modificações no fluxo de ar em vários pontos do avião durante o vôo em altos ângulos de ataque.
Quando o avião fica de nariz empinado surgem pressões muito baixas na parte de cima da asa, que causam uma multiplicidade de redemoinhos que podem se concentrar e desequilibrar a aeronave.
Em uma situação dessas não há como controlar o avião usando os procedimentos comuns. O controle costuma ser feito com a movimentação de superfícies (coisas como os flaps e os estabilizadores), que agem no fluxo de ar.
No X-31, para contrabalançar as forças que tendem a causar a queda, a principal arma é o controle de outro fluxo -do jato do motor. São uma espécie de ``pás" no escapamento do gás que servem para direcionar o fluxo.
O software que controla essas ``pás", além de outras superfícies móveis do avião -como os ``canards", umas asinhas situadas bem na frente-, está em constante aperfeiçoamento. Os vôos de teste do X-31 foram planejados para um incremento gradual da ousadia da quebra do limite do estol.
Serão manobras de assustar quem as vir. O nariz do avião pode até apontar numa direção, enquanto ele voa em outra.
O avanço dos conhecimentos em aerodinâmica trazidos pelo projeto X-31 tem um óbvio interesse militar, em primeiro lugar. Os dados obtidos poderão depois ser estendidos a atividades civis. Mas é na aviação de caça que o X-31 pretende seu principal impacto.
O ganho em capacidade de manobra é um dos objetivos dos vôos de teste. Mesmo na era dos mísseis guiados ainda é considerado importante manobrar bem o avião, do mesmo modo como já acontecia quando o combate aéreo iniciou, na Primeira Guerra Mundial, com biplanos e triplanos de madeira lentos mas acrobáticos.
Paradoxalmente, é a maior capacidade dos mísseis que tende a fazer a manobrabilidade ser valorizada.
Um míssil ar-ar (de avião contra avião) moderno pode ser disparado de qualquer posição contra o inimigo. Os mísseis antigos não tinham essa capacidade; o ideal era dispará-los por trás, já que se guiavam por calor até a turbina do adversário. O aviador da Primeira Guerra já fazia algo parecido quando se posicionava atrás da vítima para abatê-la com uma rajada de metralhadora.
Ou seja, um avião de caça precisa apenas apontar na direção do alvo para poder abatê-lo disparando um míssil. Como quem vence é quem dispara primeiro, quem primeiro se coloca nessa posição graças a uma maior capacidade de manobra tem tudo para sair vitorioso.
Um piloto pode tentar manobrar para evitar um míssil. O F-16 americano abatido recentemente sobre a Bósnia é um exemplo. Se tivesse visto o míssil que o destruiu, lançado do solo, o piloto que sobreviveu vários dias escondido poderia tentar evitá-lo, manobrando bruscamente enquanto lança contramedidas para despistá-lo.
O problema é que um avião como o F-16 precisa de alguns quilômetros para fazer uma mudança brusca de direção. Um X-31 teria menos problemas.
Um inconveniente, na visão de muitos pilotos, é a perda de velocidade que implica manobras além do limite de estol. O avião fica como que parado por um tempo. Isso pode ser remediado com motores poderosos que permitem aceleração rápida.
O X-31 foi configurado para responder a um desafio específico.
Nesse sentido, ele é um fiel descendente de uma linhagem de aviões que revolucionaram a aeronáutica nos últimos 50 anos.
O primeiro avião ``X" talvez seja o mais conhecido popularmente. Em 14 de outubro de 1947, o então capitão Chuck Yeager quebrou a barreira do som a bordo de um X-1.
Guardadas as proporções, o desafio do X-1 era tão perigoso quanto o programa do X-31 de explorar a ``queda controlada". Aviões experimentais são o que o nome diz: uma experiência que pode ou não dar certo.
Os conhecimentos, porém, justificam o risco. O X-2 bateu um recorde de velocidade em 1956, chegando a quase três vezes a velocidade do som (mais de 3.000 quilômetros por hora). Já o X-4 estava interessado apenas em estudar o comportamento de um avião sem cauda.
O X-5 foi o pioneiro de outro modo de usar as asas -tornando-as de ângulos variados em relação ao corpo do avião (a fuselagem). Foi baseado em um projeto alemão do final da Segunda Guerra (como mostra a fabricação de mísseis como o V-2 ou jatos como o Me-262, a Alemanha era o país mais avançado na aeronáutica em 1945).
Nem todos os ``X" eram tripulados. Muitos eram projetos de foguetes e mísseis. O X-15 era quase que um híbrido, projetado para o estudo de altíssimas velocidades. Ele vou a mais de 100 km de altitude a uma velocidade quase inacreditável de 7.500 km por hora.
O X-15 foi um ancestral de outro projeto ambicioso, o X-30. Apesar de numericamente estar um ``X" antes do caça super-manobrável, o X-30 ainda é um sonho -um avião hipersônico para ligar continentes.

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