São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INFERNO DA BIBLIOTECA NACIONAL EM PARIS

ROBERT DARNTON

Especial para "The New York Review"
Por sorte, esta proposição pode ser testada: durante os últimos dez anos os editores franceses vêm republicando estantes inteiras das obras mais ilegais e eróticas do Antigo Regime. Tirando proveito das atitudes mais livres do público e da polícia frente ao sexo, recorreram à fonte inesgotável do "Enfer" ("Inferno") da Biblioteca Nacional.
Os bibliotecários criaram o "Enfer" em alguma ocasião entre 1836 e 1844 como meio de escapar a uma contradição. De um lado, tinham que preservar o acervo mais completo possível da palavra impressa; de outro, queriam evitar que os leitores se corrompessem ao contato com maus livros. A saída foi reunir todas as obras eróticas mais ofensivas de todas as coleções da biblioteca e lacrá-las num único lugar, declarado inacessível para leitores normais.
Essa política faz parte do processo de expurgo do mundo que ocorreu no século 19: como parte desse movimento de "abotoar e esconder", bibliotecários de todas as partes puseram certos tipos de livros fora do alcance dos leitores e inventaram códigos para classificá-los: a "Caixa Reservada" do Museu Britânico, o código da chamada "Delta da Biblioteca do Congresso, o ***** da Biblioteca Pública de Nova York e, na Biblioteca Bodleiana, a letra grega F ("phi"), que, na pronúncia oxfordiana, soa como "Fie!" ("Vergonha!)".
Acreditava-se que a maior dessas edições estava na Biblioteca Nacional, uma vez que Paris -a Paris maliciosa da Regência e do rococó- passava por capital da pornografia. Embaixo, na cavernosa Salle des Imprimés, os leitores de vez em quando deixavam vagar seus pensamentos rumo ao andar de cima, onde, curiosamente, se encontrava o "Inferno."
Em vez de se arrastarem penosamente pelos sermões de Bordaloue e pelas histórias de Rollin, imaginavam-se subindo dois lances de escadas rumo a um reino baudelairiano de ``luxe, calme et volupté" (luxo, calma e volúpia). O "Inferno" tornou-se algo mais que um espaço de depósito definido por números de chamada -a série "D2", concebida em 1702, e a extraordinária "Y2, que remonta a 1750. O "Inferno" fez-se Céu, uma fantasia de fuga carregada de energia poética.
Um dos maiores poetas franceses, Guillaume Apollinaire, visitou-o e catalogou o acervo em 1911: 930 obras, cada qual aparentemente mais deliciosa que a outra. Um catálogo mais rigoroso, compilado por Pascal Pia em 1978, lista 1.730 títulos, ainda que muitos sejam reedições modernas, as obras originais tendo desaparecido das estantes em várias ocasiões desde o século 17. Como era de esperar, o "Inferno" tinha um grande suprimento de fruto proibido, que, entretanto, permaneceu fora do alcance dos leitores comuns até 1980, quando o "Enfer foi" abolido e os editores começaram a republicar seu conteúdo.
Toda essa literatura já caiu em domínio público. Pode-se achá-la em qualquer livraria parisiense e uma ampla amostra está na antologia do "Enfer" em sete volumes da editora Fayard: 29 romances completos, ilustrados e com introduções acadêmicas. A série da Fayard não inclui várias das obras mais importantes, como "Margot la Ravaudeuse" (Margot, a Remendona) , "Les Lauriers Ecclésiastiques" (As Glórias Eclesiásticas) e "La Chandelle d'Arras" (A Vela de Arras), verdadeiros best sellers no comércio ilegal de livros sob o Antigo Regime.
Mas algumas delas podem ser encontradas na excelente antologia publicada em 1993 por Raymond Trousson, "Romans Libertins du XVIIIe Siècle (Romances Libertinos do Século 18): uma dúzia de romances e histórias, espremidas num volume de 1.300 páginas. Já se pode, então, fazer um "tour" pelo Inferno literário da França. O que ele revela sobre a história da pornografia e sobre o lugar da pornografia na história do pensamento?
Tanto o termo quanto a coisa são motivo de discussão. Para alguns, o termo "pornografia deveria ser restrito à sua raiz etimológica (que significa "escrever sobre prostitutas"), diferenciando-o do erotismo em geral. Para outros, pornografia envolve descrições da atividade sexual que violam a moral convencional e são calculadas para excitar o leitor ou espectador.
Um pós-modernista poderia argumentar que a própria coisa não surgiu antes que o termo fosse cunhado -a saber, na primeira metade do século 19 (o primeiro uso de um termo aparentado parece ter ocorrido no panfleto de Restif de la Bretonne sobre a prostituição pública, "Le Pornographe" -O Pornógrafo-, surgido em 1769). Só então, por meio de medidas como a criação do "Enfer", o discurso público sobre o sexo começou a distinguir um gênero de erotismo particularmente digno de repressão.
O problema de tais definições é que as práticas sexuais e os tabus sexuais estão sempre mudando. Na verdade, é justamente essa variabilidade que tornava o sexo tão digno de pensamento, já que ele servia para explorar ambiguidades e definir fronteiras. Ninguém, no século 16 e no começo do século 17, pensava em banir livros por causa de uma licenciosidade que hoje seria considerada pornográfica.
Era a religião -e não o sexo- que determinava os limites do lícito e do ilícito. Mas é impossível separar sexo de religião nas primeiras obras da pornografia moderna: os "Ragionamenti (Raciocínios) (1536), de Aretino, onde as cenas mais lascivas são ambientadas num convento; "L'École des Filles" (A Escola de Moças) (1655) e "L'Académie des Dames" (A Academia de Senhoras) (1680), que adaptam os temas de Aretino ao anticlericalismo francês; e "Vénus dans le Cloître" (Vênus no Claustro) (cerca de 1682), onde o amor livre promove o livre-pensamento.
Na maré alta da pornografia setecentista, obras de sucesso, como "Thérèse Philosophe" (Thérèse Filósofa) (1748), empregavam o erotismo na luta pela causa iluminista. E, às vésperas da Revolução, livros de sexo, como a "Correspondance d'Eulalie" (Correspondência de Eulalie) (1784), serviam sobretudo como veículos de crítica social.
Após 1789, a pornografia proporcionou todo um arsenal para golpear a aristocracia, o clero e a monarquia. Mas, depois de se tornar política (por exemplo em "Dom Bougre aux États-Généraux" -Dom Sodomita nos Estados-Gerais-, uma invectiva contra os deputados nos Estados-Gerais), ela se tornou trivial ("Les Quarante Manières de Foutre" -As 40 Maneiras de Foder-, um pseudomanual de sexo que se lê como um livro de receitas: "Tome uma coxa, adicione manteiga, cubra e leve ao fogo até ferver...").
É bem verdade que o século termina com o Marquês de Sade, que alguns já saudaram como profeta da vanguarda moderna. Mas as infindáveis permutações de corpos copulantes na obra de um autor mais típico, André-Robert Andréa de Nerciat, dão mostras de um gênero exaurido. Nos séculos 19 e 20, Baudelaire e Bataille encontraram novas maneiras de tornar o sexo digno de pensamento; e a nova era da alfabetização e produção em massa transformou a pornografia num fenômeno de consumo de massa (1).

Continua à pág. 5-5

Texto Anterior: INFERNO DA BIBLIOTECA NACIONAL EM PARIS
Próximo Texto: Saiba quem é Darnton
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.