São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Quarta República salvaria idéia americana

CHRISTOPHER HITCHENS
DO "THE NEW YORK TIMES REVIEW OF BOOKS"

Tente imaginar a seguinte situação: suponha que os EUA sejam invadidos ou obrigados a se desmembrar como Estado. A tão evocada nação, "o povo americano", persistiria em manter sua orgulhosa identidade? Ou se dividiria, como a ex-Iugoslávia após 1991?
Se você está inclinado a dar a segunda resposta, então você é um balcanista, ou seja, de tendência pessimista e considera uma grande variedade emergindo da unidade em um tumulto de competição regional, com reivindicações étnicas e linguísticas.
Contra esta tendência ergue-se Michael Lind, um redimido neoconservador com uma contrateoria de "nacionalismo liberal".
"Nós, americanos, somos mais parecidos com os vizinhos mexicanos -uma nação de cultura racial diversificada- do que com os canadenses -um conjunto de duas ou mais nacionalidades sem nenhuma cultura canadense ou identidade que poderia sobreviver a uma divisão do Canadá em diversos Estados. Nós, americanos, do ponto de vista liberal nacionalista, somos definidos por uma língua e uma cultura em comum; e enquanto isso nos unir formaremos uma nação etnocultural".
Como se pode concluir, Lind (um texano de origem escandinava) não demonstra nenhuma paciência no livro "The Next American Nation" (A Próxima Nação Americana, The Free Press, 1995) com teorias de um pool de genes, "uma América morena" ou qualquer coisa parecida.
Para ele, raça e nação são apenas obliquamente relacionadas, se tanto. A maioria dos americanos consegue mais facilmente se ver como canadenses (de origem inglesa ou francesa) do que como mexicanos (mesmo que "ocidentalizados").
Mas, e se Lind estiver certo, e a idéia de americano se parecer mais com a de mexicano? O que acontece se pararmos de pensar de acordo com a pele?
Nesse caso, um perigo contrário logo ficaria evidente. Em vez de balcanização, haveria a ameaça de uma brasilização com as rachaduras e fendas numa sociedade mais vertical do que horizontal, e com uma pirâmide de riqueza, talento e privilégios ainda mais acentuada e cujas camadas (como escrever isto delicadamente?) se tornam cada vez mais escuras à medida que descem.
Há décadas, o canadense John Kenneth Galbraith deu aos norte-americanos o irônico título de "sociedade afluente". Lind parece disposto a ocupar o espaço vago por Galbraith.
Lind pressupõe uma sociedade onde as elites ricas conseguiram, por um uso hábil do sistema tributário, do mercado internacional e das relações entre trustes e educação, remediar questões de maneira a viver num país diferente daquele onde vivem os demais cidadãos.
Possuem suas próprias escolas, balneários, bancos e redes de informática. Também possuem uma polícia particular e sistemas de segurança. Têm, por virtude da "riqueza" primordial, diante da qual todos os candidatos devem se submeter, seus próprios senadores e congressistas.
Para corrigir tal tendência plutocrática, Lind defende uma dose reforçada de consciência de classe entre os que trabalham muito, "seguem as regras", e acabam esgotados ou exauridos.
Hoje principal editor da "The New Republic", Lind é um dos poucos escritores contemporâneos que perceberam o fato de a identidade política ser um pretexto perfeito para a prática tradicional de dividir para governar. É muito conveniente, do ponto de vista das oligarquias, que os que trabalham penosamente devem brigar entre si sobre firulas como o politicamente correto.
Galbraith falava de uma sociedade que, exceto do ponto de vista de distribuição de riqueza e da divisão central entre brancos e negros, era relativamente homogênea; Lind descreve uma cultura fragmentada, onde ganhadores e perdedores parecem seres vindos de planetas diferentes.
Como chegamos aí? Ele explica que houve três repúblicas americanas distintas (sem contar com a nação cultural americana que havia antes da declaração da independência).
Desde a promulgação da Constituição houve a "Anglo-América" (entre 1789 e 1861), substituída pela "Euro-América" (entre 1875 e 1957) e a "América Multicultural" iniciada em 1972 e modelo até hoje -e de uma ou outra maneira- também amanhã.
Na "Anglo-América", a comunidade nacional era essencialmente anglo-saxônica ou teutônica, com o protestantismo como religião e um republicanismo federal como ideologia.
A "Euro-América", ao ser mais maleável diante de novas chegadas, transmutou o americanismo em algo mais europeu que inglês e mais cristão do que protestante.
A expansão dos direitos de cidadania e a pressão pelos direitos civis alteraram a ideologia para uma de democracia federal. O prefixo "judaico" era, algumas vezes, generosamente acrescentado ao "cristão", sem o que as denominações religiosas certamente ficariam incompletas.
Atualmente, a Terceira República ainda está em formação. Muitas antigas e novas minorias preferem enfatizar suas microdiversidades, enquanto muitos entre a maioria observam esse traço como não-americano. Enquanto isso, a classe dominante, como já foi dito, sorri desdenhosamente e caminha para os bancos.
Vamos considerar minha profissão. Há um único poder dominante na imprensa americana e na mídia eletrônica, um magnata que é apenas tecnicamente -pode-se dizer "virtualmente"- americano, mas não tem dificuldade em obter ação do Congresso, Wall Street e da burocracia federal.
Enquanto isso, a direita ortodoxa se queixa da mídia -principalmente de seu brutal excesso de liberalismo. Ao mesmo tempo, parte da esquerda dirigida ao politicamente correto argumenta sobre as modulações da mistura de epidermes e genitália, enquanto um número surpreendente de pessoas insinuam que nossos órgãos de comunicação de massa são dirigidos por judeus a judeus.
No momento, vamos concordar com Lind e dizer que os magnatas transnacionais e os grandes doadores políticos -aqueles que violam, como ele afirma, "a separação cheque-Estado"- não são muito numerosos entre os perdedores.
Lind defende uma Quarta República, que protegerá a idéia americana tanto da religião como dos promíscuos multiculturalistas. Uma nação, conforme ele explica, "deve ser dedicada a uma proposta, mas não pode ser uma proposta". Um "contrato social de mercado" é essencial. Em essência, um novo ``New Deal" atualizado.
Ele financiaria a assistência social, assistência médica a partir de uma renda progressiva e de impostos sobre consumo.
Melhores salários para os trabalhadores americanos seriam obtidos por uma série de medidas, das quais a mais controversa seria a de restrições à imigração e uma "tarifa social" para impedir a importação de produtos fabricados em países de mão-de-obra barata.
É um prazer a leitura de Lind, porque ele é muito inteligente e escreveu um livro consistente. Por exemplo, enquanto lia as páginas sobre a transição da América "Anglo" para a "Euro", pensei ter percebido uma falha.
Foi no período de 1898 -em plena fase "Euro"- que ocorreu um grande retorno de anglofilia, ligado a uma reação e também ao expansionismo americano. Foi a época em que Theodore Roosevelt concordou com Rudyard Kipling, e os Vanderbilts e Astors começaram a se casar com os Churchills. Mas pouco depois de haver assinalado o meu espanto na margem, Lind pinçou esta anomalia da sua narrativa e com destreza discutiu-a.
Há alguns sinais de precipitação. Lind descreve o Sul pós-1865 como uma colônia interna de mão-de-obra barata para a capital Norte, um comentário que ele gosta tanto que não hesita em repetir algumas páginas depois como "uma colônia interna terceiro-mundista para o Norte industrial".
Mas há algumas reservas. Os religiosos ou monoculturalistas nativistas, se assim pudermos chamá-los, demonstram uma nostalgia pela Primeira República. Esquecem-se que para o Reino Unido tornar-se um exemplo de uma sociedade sólida dirigida por uma classe dominante competente foi obrigada a superar diferenças entre escoceses, galeses, irlandeses e ingleses que eram mais intensas, para não dizer sanguinárias, do que qualquer confronto entre Norte-Sul ou branco-negro nos Estados Unidos.
Londres também se tornou a capital dos exilados huguenotes e um dos centros do mundo judaico. Sucessivas experiências de conflitos sociais, reformas políticas e guerra foram feitas para que o país se tornasse mesmo uma democracia social ou um Estado de bem-estar social. O "talento saxão", tão reverenciado por Thomas Jefferson e outros, tinha pouco a ver com isso.
Os Estados Unidos foram incomparavelmente mais bem-sucedidos, e conforme Lind corretamente nos adverte, talvez também estejam vivendo um tempo "emprestado.
Seu multiculturalismo pode muito bem se metamorfosear em uma negação tribal medonha de si mesmo, e isto poderá acontecer rapidamente se a camada econômica superior continuar a soprar para longe.

Tradução de Lise Aron

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