São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Sr. cabeça, sra. ossada

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA - De fevereiro a março deste ano, 290 pessoas foram enterradas no Rio sem direito a uma vela. Disse pessoas e já me corrijo. Não eram pessoas. Eram corpos. Alguns incompletos. Desceram a cova nus, sem que soubéssemos seus nomes.
O trágico do Brasil de nossa época é que o problema social está perdendo o rosto. Antigamente, a vizinhança conhecia os seus mendigos. Dava-lhes de comer à soleira da porta. Hoje, a exclusão social tem a impessoalidade de uma multidão.
Ontem, mesmo o cadáver mais roto não recebia a primeira pá de terra sobre a cara antes que alguém pingasse uma lágrima em sua memória. Agora, enterramos 290 anônimos sem um único gemido. E o fazemos com a naturalidade de alguém que puxa a descarga de uma privada.
É como se desejássemos afastar do nariz da sociedade o mau cheiro de tantas vítimas inúteis. Não nos damos conta de que a ausência da miséria impessoal pode exalar um odor ainda mais insuportável do que o proporcionado por sua presença.
Foram-se os corpos. Ficaram os formulários do IML carioca. Recuperados pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, os relatórios foram manuseados pelo repórter Abnor Gondim.
Revelam alguns casos de violência. A miséria carioca é morta a tiros, a facadas, a pancadas. A geração meio-fio também morre de doenças desconhecidas. Mas é o espaço dedicado ao nome das vítimas o que mais chama a atenção nos formulários do IML.
Não há josés. Tampouco marias. Num deles lê-se ``homem preto". Noutro, ``homem pardo". Num terceiro, ``mulher branca". Há casos em que, estando incompletos, os corpos são identificados pelo apelido: ``tronco carbonizado", ``mão direita", ``cabeça humana", ``ossada humana".
A papelada do IML carioca está em avançado estado de putrefação. Logo descobriremos que a miséria não é um trabalho para o coveiro.

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