São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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do homem de calcinhas

MARILENE FELINTO

Um domingo desses o jornal veio coalhado de notícias e histórias sobre procedimentos médicos para mudança de sexo: cirurgias corretivas (ou transformadoras), cortes, enxertos. Vaginas costuradas, peitos e pênis arrancados, ou tudo construído artificialmente.
Entrar naquela sala de horrores era como penetrar num corredor de hospital e estranhar o cheiro de éter. A série de sensações vai da náusea à solidariedade e ao medo da dor. É preciso sair, respirar de novo ar puro, sentir o alívio de não ser um daqueles seres do éter.
Pior do que a confusão física era a bagunça mental provocada pelas histórias: mulheres que repudiam sua genitália fêmea e trocam por uma macho, não para manterem relação sexual com mulheres, como se supunha, mas com homens gays.
Também um domingo desses, assistindo ao filme ``Ed Wood", de Tim Burton, sobre vida e obra do fracassado diretor de cinema hollywoodiano Edward D. Wood Jr., parei na espantosa cena em que o mocinho (o próprio Wood) resolve contar à namorada, durante um passeio, uma tara sua: com toda a naturalidade, ele diz a ela que tem o costume de se vestir de mulher de vez em quando, que foi para a Segunda Guerra usando calcinha por baixo do uniforme.
Significativo que o ambiente onde Wood faz a revelação seja um trem fantasma de um parque de diversões, entre caveiras, grunhidos de bruxas e o balançar macabro de molambos pretos nas paredes.
O fetiche da calcinha é coisa velha. Novo é o troca-troca que foge a qualquer parâmetro de entendimento. Não se trata mais da simples diferenciação entre sexo e gênero, entre biologia e sociologia: que sexo é fator biológico, ligado à reprodução da espécie através da diferenciação sexual; e que gênero é a construção social do indivíduo.
Trata-se do entrecruzamento dessas duas coisas, e muito mais, fenômeno que já escapa à compreensão antes freudiana do mundo.
Aliás é conhecido o fascínio de Freud pela analogia existente entre o destino histórico de Pompéia (``o soterramento e a posterior escavação") e os eventos mentais que ele investigava: o ``soterramento pela repressão e a escavação pela análise".
Quem sabe não se vive hoje uma espécie de ressurgimento sexual da humanidade, em que esses homens e mulheres transformados em mesas de cirurgia erguem-se dos escombros da desrepressão e voltam (ou avançam) rumo a uma civilização em que havia (ou haverá) seres metade homem, metade cavalo, metade isso, metade aquilo.
Gente menos impressionável acha tudo normal, sinal de futuro dos tempos, quando não haverá mesmo definição de sexo, quando trocar de sexo será como instalar pinos, pivôs e próteses nos dentes.
Sinal dos tempos, ou mesmo de que na natureza nada se cria, tudo se transforma, o fato é que, nesse troca-troca sem rumo, quem parece sair perdendo somos nós, que ainda ousamos nos chamar de ``mulheres", assim simplesmente, com preferência por simples (sic) homens.
Ou sairemos ganhando? Ou isso não é uma guerra? Afinal, a humanidade parece estar optando pelas nossas calcinhas como uniforme diário, ``pra bater", como se diz, no dia-a-dia -numa estranha imitação de nós, numa espécie de homenagem póstuma ao que um dia terá sido uma mulher.

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