São Paulo, segunda-feira, 10 de julho de 1995
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O estômago e a vírgula

JOSUÉ MACHADO

Os congressistas brasileiros consideram-se em situação financeira difícil, e o deputado Wilson Campos (PSDB-PE) expressou isso de forma um pouco estranha:
``Todo estômago do brasileiro é igual; dos trabalhadores e dos deputados. A Mesa (diretora da Câmara) precisa encontrar um caminho que tire os parlamentares dessa dificuldade."
Só R$ 8 mil por mês mais R$ 16 mil de gratificação anual mais apartamento funcional ou auxílio-moradia mais passagens aéreas para o estado representado e para o Rio mais R$ 10 mil para pagar até 14 funcionários mais despesas postais e telefônicas pagas é pouco, claro. E chegar às festas juninas, as mais importantes do Nordeste, como chegaram, sem bufunfa para pagar rojões e busca-pés não é mole. Tristeza.
O deputado WC teve toda razão de bufar. Só foi um pouco infeliz na forma. O que quer dizer ``Todo estômago do brasileiro é igual"? O estômago inteiro do brasileiro é igual a alguma coisa? É recheado? Bem forrado? Achatado? Vazio? Igual a quê?
Mesmo comovidos com a parlamentar lamúria, percebe-se que ele, modestamente, quis dizer que todo brasileiro têm estômago com as mesmas necessidades, quer seja um aposentado feliz, um trabalhador sorridente da construção civil ou um coletor de lixo de salário mínimo. Todos precisam papar, de preferência três vezes por dia, tomar remédio quando necessário, ir para a cama quentinha, se possível bem acompanhado, passear de avião pra lá e pra cá e visitar as bases sempre que possível. Quaisquer bases.
Emocionado, o deputado WC foi meio desconexo, coisa perdoável quando se percebe nas entrelinhas que ele quer para todos o mínimo que ele tem. Muito bom.
Só que poderia ter dito com mais exatidão:
``O estômago de todos os brasileiros é igual; temos as mesmas necessidades básicas: trabalhadores e deputados."
Mesmo que fosse mais bem articulada, sua lamentação não faria justiça aos deputados, porque ele os separa dos trabalhadores:
``Todo estômago do brasileiro é igual; dos trabalhadores e dos deputados."
Por acaso não considera os deputados trabalhadores? Uma injustiça para com seus pares. Deveria ter dito com justiça:
``Todos os trabalhadores temos as mesmas necessidades, por isso nada de desindexar só os salários."
O deputado-cantor Agnaldo Timóteo (PPR-RJ) foi mais sintético e preciso em seu sutil recado sobre o assunto. Pelo menos na versão reescrita por algum repórter piedoso:
``Estamos em Brasília exercendo nosso mandato de forma nobre de terça a quinta, ganhando um ridículo salário de R$ 5 mil, e ainda temos de aguentar desaforo?"
Sim, eles sofrem. Os R$ 8 mil de fato reduzem-se com os descontos a míseros quase R$ 6 mil. E na pauleira infernal de terça a quinta. Ele tem razão. Tanta que o senador Ney Suassuna (PMDB-PB) declarou:
``Estou extremamente preocupado com o desalento dos parlamentares, que não têm receita paralela."
Essa vírgula antes do ``que" (``...parlamentares, vírgula, que não...") terá sido posta pelo ilustre senador? Do jeito que está, com a vírgula, ele diz que nenhum dos parlamentares têm receita paralela. Trata-se da tal oração subordinada adjetiva explicativa, introduzida, no bom sentido, por pronome relativo. "Que, no caso.
``O homem, que é mortal, vira pó."
``A neve, que é branca, enfeita o inverno."
``Os deputados e senadores, que são honestos e trabalhadores, merecem ganhar mais."
Percebe-se por esses exemplos que as orações subordinadas adjetivas explicativas indicam qualidade essencial ao substantivo a que se referem: o homem é necessariamente mortal (que pena!), a neve é imperiosamente branquinha (que bom!), os deputados e senadores são essencial e definitivamente honestos e laboriosos (que maravilha!). Por isso tais orações -explicativas- são separadas por vírgulas.
As orações adjetivas explicativas diferem das adjetivas restritivas, que exprimem idéia acidental ao substantivo referido. Na afirmação do senador NS, portanto, sobra a virguleta, porque há deputados e senadores com renda paralela: donos de hospitais, de fazendas, de indústrias, de emissoras de rádio e TV. Um engano virgulatório dele ou do escriba que lhe transcreveu a declaração preocupada. A oração suassunial, para ser correta e exata, deveria ser desvirgulada -uma adjetiva restritiva.
As restritivas ligam-se ao substantivo (ou substantivos) sem vírgula -sem vírgula:
``O homem que é justo vai para o céu de mala e cuia."
(Nem todos são justos, parece.)
``Os parlamentares que não têm receita paralela vão morrer de fome."
(Nem todos têm receita paralela, acredita-se).
``Que não têm receita paralela", portanto, livre de vírgulas, é a oração adjetiva restritiva que exprime corretamente a louvável preocupação do senador e de todos os deputados que expressaram sua dor no caso.
Por que não o IPMF um pouco maior, a metade para eles?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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