São Paulo, quarta-feira, 12 de julho de 1995
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Reengenharia do Estado e autonomia universitária

JOSÉ MARTINS FILHO

Quando as universidades públicas paulistas passaram da política do pires na mão para a autonomia de gestão financeira, em 1989, sabia-se que essa prerrogativa não era exatamente um privilégio: era sobretudo a aceitação de um grave compromisso de responsabilidade gerencial.
Os recursos não eram maiores que os da série histórica de seus orçamentos: apenas correspondiam à média dos anos anteriores, como ainda hoje acontece. A diferença estava em que, com a fixação de um percentual sobre a arrecadação do ICMS para as universidades, elas passavam a ter, de um lado, a possibilidade de planejar seus investimentos e, de outro, a certeza de que não mais contariam com verbas suplementares.
O que poderia ter sido um desastre foi, no entanto, um sucesso. A excepcionalidade dos indicadores científicos que as universidades paulistas (Unicamp, USP e Unesp) já apresentavam em relação ao sistema universitário como um todo -sozinhas, as três respondem por 60% da produção científica nacional- teve pronta correspondência no plano da administração autônoma. Basta ver que, com os mesmos recursos, porém com maior liberdade de ação, todos os indicadores subiram de qualidade e rendimento.
Tomem-se os números da Unicamp, por exemplo. Comparando-se o desempenho de 1989, ano da implantação da autonomia, com os de 1995, ano em que ela se vê surpreendentemente ameaçada, temos que o número de alunos matriculados subiu de 15 mil para mais de 21 mil, que o número de vagas no vestibular evoluiu de 1.570 para 1.990, que o movimento anual de defesas de tese cresceu em quase 100% (de 525 em 1989 para 919 no ano passado) e que o volume de projetos de pesquisa saltou de 3.500 para 6.145.
No plano do atendimento de saúde -do qual os hospitais universitários são a última rede de segurança de um sistema em colapso- os números são impressionantes. No mesmo período de seis anos, o volume de consultas atendidas no Hospital das Clínicas da Unicamp saltou de 372 mil para 487 mil; o de cirurgias, de cerca de 10 mil para quase 20 mil; e os exames laboratoriais de 811 mil para mais de 1,4 milhão.
Pode-se pensar que, para chegar a esses indicadores, as universidades paulistas, a cavaleiro da autonomia, tiveram uma correspondente expansão de pessoal e de recursos. De modo algum.
Os recursos, embora sejam suficientes, estão no mesmo patamar de 1979, quando as universidades atravessavam uma época de crise. Não poucos se surpreenderão ao saber que, na Unicamp, o número de docentes caiu de 2.362 para 1.989, ao passo que o percentual daqueles com titulação mínima de doutor subiu, entre esses, de 54% para mais de 75%. Caiu também o número de funcionários nas áreas de ensino, pesquisa e administrativas: de 5.300 para 4.889.
Tomando-se esses números comparativos, sob uma perspectiva histórica, causa consternação que o governo de São Paulo tenha tomado a iniciativa de enviar e fazer aprovar na Assembléia Legislativa um dispositivo limitador da autonomia das universidades no contexto da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Ao fixar um teto para a correção do percentual orçamentário das universidades, praticamente limitando-o aos valores de arrecadação de 1995, o governo pode não estar matando a autonomia, mas torna-a fictícia na medida em que interrompe a capacidade de investimento das universidades, fechando-lhes o acesso às oscilações positivas dos níveis de arrecadação.
Em mais de uma ocasião, os reitores procuraram fazer ver que, em face das dificuldades econômicas do Estado, seria preferível uma negociação caso a caso dos eventuais excedentes de arrecadação a pôr em xeque a manutenção de uma conquista política que, até aqui, vinha sendo um fator de equilíbrio e de desenvolvimento assegurado às universidades paulistas.
Era, além disso, uma forma de permitir às universidades sobrenadarem nas flutuações do mando político, e se hoje sabemos da retidão do governo atual, quem nos garantirá que amanhã não ficaremos à mercê da inespecificidade e das incertezas da lei que ele acaba de fazer aprovar?
Compreende-se que queira desidratar as bases da máquina estatal e sem dúvida deve fazê-lo, mas surpreende que volte sua tesoura de poda precisamente contra aquelas instituições (poucas, como se sabe) que dão mostras de funcionar adequadamente e que, bem por isso, deveriam ser estimuladas em seu crescimento e em sua qualificação.
A poda não deveria se dar na educação superior nem na pesquisa, e será lamentável se vier a afetar a salvaguarda do combalido sistema de saúde, os hospitais universitários. Da mesma forma que não se antevê o lucro político que o governo extrairá disso, dificilmente se percebe de que maneira o dinheiro negado às universidades poderá sanar a situação financeira do Estado.
Melhor será se, em vez de avocar para si esse lastro histórico indesejável, o governo chamar as universidades para uma parceria construtiva, para a requalificação dos professores do ensino básico e secundário, por exemplo. As universidades estão prontas a colaborar.

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