São Paulo, quarta-feira, 12 de julho de 1995
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Irracionalismo e informação

CLÁUDIO WEBER ABRAMO

Uma das graves pragas modernas é a crença na ``informação". Vêmo-la em plena atividade, por exemplo, nas resmas de papel dedicadas à chegada da Internet ao Brasil. A impressão transmitida é que, agora sim, saberemos tudo sobre tudo: o conhecimento ``ready-made" nas pontas dos dedos.
A partir da época em que Marshall McLuhan ganhou notoriedade, desenvolveu-se gradualmente a noção de que vivemos numa ``sociedade da informação" globalizada, ou quase. Alimentada por uma extensa rede de interesses, entre os quais figuram em lugar proeminente as indústrias de equipamentos de informática, de telecomunicações e de software, a idéia se baseia em um conjunto relativamente reduzido de fatos e proposições que os articulam entre si, governados por certos pressupostos relativos tanto à organização e inter-relacionamento dos grupos sociais como ao processo de criação de conhecimento.
Os fatos chamados a testemunhar materialmente a respeito do assunto referem-se, em sua maioria, a peculiaridades de objetos e processos pertinentes à informática: capacidade de armazenamento de informações e velocidade de recuperação de dados em sistemas de memória de massa, velocidade de processamento de computadores e equipamentos subsidiários, conectividade e integração intrínseca e extrínseca entre sistemas e assim por diante.
Do melhoramento desses atributos decorre diretamente a ampliação do escopo e da flexibilidade dos programas usados para executar uma variedade sempre crescente de tarefas. A circunstância elementar de essas próprias tarefas mudarem de caráter por força das alterações introduzidas no modo de cumpri-las é frequentemente mencionada como demonstração do ``poder da informática" -como se essa não fosse a regra no desenvolvimento de qualquer tecnologia.
A partir da constatação de que tais fatos ocorrem, passa-se a afirmar que o grande volume de informações disponíveis em veículos que estariam em princípio ao alcance de qualquer indivíduo representa a democratização do conhecimento e, portanto, estímulo decisivo ao desenvolvimento da cidadania, à mitigação das desigualdades sociais e assim por diante, abrindo uma nova era de progresso para a humanidade.
Ainda não se chega ao ponto de afirmar-se que só não exerce a cidadania quem não quer, mas esse passo não deve andar muito longe.
Duas inferências diretamente falsas estão na base de toda essa propaganda: a primeira, de que acúmulo de informação significa conhecimento; a segunda, de que a existência da informação e de seus veículos seria suficiente para garantir acesso inteligente e, principalmente, operacionalização. É como dizer que os analfabetos teriam sua cidadania incrementada pela simples existência das bibliotecas públicas.
Mas o que significa usar um meio de comunicação? Um grande volume de informações exige a mobilização de recursos humanos e materiais para poder ser apreendido e processado. Tais recursos estão nas mãos de organizações, governos e empresas, mas em geral não nas dos cidadãos. Esses recursos estão evidentemente mais disponíveis para os cidadãos ricos do que para os pobres.
Em outras palavras, sob o ponto de vista da distribuição do poder, nada autoriza a concluir que a ``revolução da informação" atue na direção de um maior equilíbrio entre os agentes sociais. A informação como instrumento de poder não pode ser medida absoluta, mas relativamente: como o poder é atributo relacional, não advém da ``posse" de uma quantidade X de informação, mas (entre outras coisas, naturalmente) do fato de A dispor de mais condições de processar a informação do que B.
Se a ordem social é montada de maneira a garantir que A sempre disponha de mais instrumentos de processamento (além de outras coisas) do que B, segue-se que, à parte convulsões nessa ordem, A sempre terá mais poder que B.
Os esforços pelo acúmulo cada vez maior de informações se exercem na esperança de que os sistemas de ordenamento, síntese e articulação das informações não só progridam no mesmo ritmo como ganhem novos patamares de complexidade. Há pelo menos dois aspectos a notar quanto a isso.
O primeiro, um tanto trivial, é o evidente absurdo de se supor que qualquer tipo de informação relevante seria, em princípio, resumível ou sintetizável. Como se sintetizam a obra de Picasso, Madame Bovary, a Nona Sinfonia de Beethoven, a teoria da relatividade?
Existe na verdade um modo de, radicalmente, ``sintetizar" esta última -por extinção, caso venha a ser superada por alguma outra teoria. Já a extinção não-evolutiva do conhecimento e da crítica é o resultado dos esforços de resumo e síntese que se verificam tipicamente no jornalismo, na dita indústria cultural, nos mecanismos de disciplinamento das organizações (``teorias" gerenciais propagadas por gurus) e na propagação de seitas religiosas e profissionais que vendem ``soluções" acabadas para problemas humanos.
O segundo aspecto a notar é o fato de o discurso dominante a respeito do assunto encarar a informação como peças que se encaixam em níveis. No plano mais básico estariam os dados brutos, organizados em categorias conforme a origem. Estas se articulariam entre si por meio de conjuntos de princípios ordenadores, compostos no âmbito de cada finalidade prática ou interesse específico, formando novas categorias. E assim por diante.
O instrumento operador dessa espécie de ganhos quânticos na direção da síntese total seria o software dos sistemas de telemática. Cada conjunto de princípios ordenadores em cada patamar representa, é claro, uma miniteoria a respeito daquele domínio particular, cujo modelo, operacionalizado, é o software.
O ponto pivotal, ou seja, as condições de criação de cada miniteoria, permanece não-explicado. Fica implícito que as construções teóricas vão se formando como que automaticamente pela agregação dos dados. O que alimenta a ilusão de que a informação pode ser ``processada" mecanicamente e, desse modo, produzir conhecimento é, assim, uma modalidade de empirismo vulgar e, portanto, de irracionalismo.

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