São Paulo, quinta-feira, 13 de julho de 1995
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A reputação no enfoque da imprensa

AUGUSTO MARZAGÃO
``A HONRA DA VIRTUDE NÃO ESTÁ NO BATER, MAS NO COMBATER."

Montaigne
Acompanhando com muita atenção o debate sobre a ética na imprensa, lembrei-me do célebre quadro de Velazquez, ``A Rendição de Breda", que retrata a cena na qual um capitão genovês agoniza, em meio aos destroços da batalha, amparado pelo cardeal Mazarino.
Em suas anotações, o grande estadista e primeiro-ministro sob Luiz 14 faz uma amarga e profunda reflexão sobre os sofrimentos do soldado. Este, a seu ver, morria muito mais esmagado pelo sofrimento de haver perdido a estima do príncipe do que em razão da febre que o devastava.
E, em seu delírio, falava constantemente de sua reputação, abraçando fortemente o cardeal como se quisesse arrastá-lo consigo para outro mundo a fim de fazê-lo testemunhar ali em seu favor.
Reputação. Essa palavra-chave abriga um anseio que ao longo dos séculos mobiliza as energias e a inteligência dos homens, em busca da conquista do respeito de seus semelhantes.
Mudaram as formas de construção e de destruição da honorabilidade dos homens, mas as questões fundamentais aí implicadas permanecem inalteradas: ganha-se e perde-se mais rapidamente uma reputação, os públicos envolvidos são mais amplos, porém as consequências que seu ganho ou sua perda acarretam nos indivíduos são as mesmas: o orgulho e a vergonha; exaltação e humilhação; euforia e depressão; intensa alegria e melancolia mais profunda.
Hoje, porém, em vez de os grandes pintores retratarem a agonia dos homens públicos caídos em desgraça, como fez Velazquez, são as imagens hiper-realistas das câmeras de TV que assumem esse papel.
Em questão de semanas, ou até de dias, vemos refletir-se, nos implacáveis tubos catódicos, uma expressão de morte no rosto abatido do supliciado, em sua postura corporal curvada, na perda do brilho do olhar. E sobrevém a morte social, representada pela rejeição em massa, pelo desconvite, pelo isolamento, por uma série de gestos reprovadores, pelo escárnio, e, ao fim, o golpe de misericórdia: o esquecimento.
No passado, o príncipe era o árbitro e o último recurso na construção e na desconstituição das probidades. No império da aldeia global, a instância decisiva, irrecorrível, suprema, tem sido parte da mídia.
Para o repórter, o ato de produzir uma denúncia envolve aparentemente a vontade de cumprir certas determinações técnicas do jornalismo: atualidade do assunto, interesse público, importância da pessoa noticiada, tipo de questão em causa, enfim, coisas de manual.
O bom nome da pessoa visada não entra nesse instante no horizonte de suas considerações, como um possível valor fundamental, especialmente no caso de homens que lidam com assuntos de interesse público, a exemplo do político, do sindicalista, do líder comunitário, sindical ou religioso, do professor, do juiz, ou do próprio jornalista.
Há uma perversão, um viés, uma grave distorção profissional que mais ou menos se fixou em toda a parte, segundo a qual a vida de um homem público, em qualquer de seus aspectos, não lhe pertence e, por outro lado, cabe-lhe provar a cada dia sua inocência em todo crime que lhe seja imputado.
Ao jornalista menos avisado, a borduna da crítica e da denúncia, ainda que imotivada ou inconsistente; ao homem público, que se valha dos céus para se proteger do imprevisível, do indeterminado, do impreciso, do vago, da metralhada muitas vezes tão fortuita quanto as balas perdidas nas ruas violentas do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Como nos tempos mais sombrios da Revolução Francesa, as listas dos guilhotináveis, como nos mais duros tempos do autoritarismo brasileiro, as listas dos cassáveis, hoje, circulam as listas dos execráveis da opinião. Nelas, frequentemente, à revelia de critérios pelo menos constantes, são incluídos ou delas são retirados nomes por motivos não muito claros.
Notáveis da República, até ontem protegidos pela túnica inconsútil de uma probidade inatacável, correm humildemente aos gabinetes estratégicos e às direções e redações de emissoras, jornais e revistas, para implorar clemência, piedade, como no passado as esposas e mães dos desgraçados da Revolução Francesa corriam a se humilhar diante da soberba dos juízes dos tribunais de exceção.
A última lista em foco, a de muitos jornalistas supostamente aposentados de forma fraudulenta, ao meu ver gerou na categoria uma espécie de pânico mudo, ao sombrio contato com suas próprias vaidades e displicências.
O episódio deve nos servir para refletir grave e longamente sobre essa matéria. Sobre os limites, os deveres, as responsabilidades morais e políticas do jornalista no seu ofício de informar e opinar. Ao sentir na própria carne os aguilhões da injúria, da denúncia vazia ou ligeira, imoderada, que pense melhor, com mais vagar -antes de mergulhar avidamente nas vidas alheias-, nas motivações que o movem e, sobretudo, que reflita sobre a devastação insanável que podem causar suas palavras fáceis no maior patrimônio de um cidadão de bem: sua reputação.
A numerosos jornalistas de ontem e de hoje, a história do Brasil credita contribuições decisivas em campos da maior relevância, como a redemocratização e a reconquista de direitos e liberdades individuais e coletivas, e de informação, expressão e opinião.
Fatos lamentáveis como os que agora testemunhamos, em que aparece coberta de ignomínia a reputação de certas personalidades destacadas da imprensa e outras menos celebradas, devem ao mesmo tempo representar uma lição de vida para os profissionais brasileiros.
Sobretudo às novas gerações de jornalistas, que se iniciaram na responsável e importante missão de formar e informar a opinião pública, segundo o critério da verdade. Porque a verdade não tem adjetivos. É como um manto sem costura.

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