São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 1995
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Estes senhores do Congresso

GERARDO MELLO MOURÃO

Quem são estes senhores do Congresso, da Câmara e do Senado -umas seis ou sete centenas de políticos que, em tese, representam o povo e os Estados de nossa iludida ou desiludida república federativa? Até onde vai a legitimidade de sua representação, tantas vezes contestada?
É de esperar que alguns congressistas conheçam sua própria história. Por exemplo: ao proclamar-se a república, em 1889, a Câmara e o Senado eram maciçamente monarquistas. Na Câmara havia apenas dois deputados republicanos e no Senado nem um só senador partidário da república. Mas a monarquia foi derrubada, apesar de tão solidamente representada nas duas Casas do povo. Os monarquistas da véspera, no dia seguinte eram ministros de Estado, como o conselheiro Rui Barbosa, e até presidentes da República, como o conselheiro Rodrigues Alves.
Em maior ou menor escala, o fenômeno repetiu-se através dos tempos, mesmo sem golpes armados, como os de 30 ou de 64. Em 37, um ditador fechou o Congresso num discurso pelo rádio. No dia seguinte, a maioria dos congressistas dissolvia-se na adesão ao Estado Novo do ditador Getúlio.
O regime militar de 64 por duas vezes suspendeu o Congresso, uma delas com tanques de guerra e baionetas, outra com um simples decreto do general Geisel. Foram poucos os que resistiram, umas duas ou três dezenas, durante uma semana encurralados no palácio assombrado, a pão e água.
Eu mesmo estava entre eles. Saímos de cabeça erguida, quando nos cortaram a luz e a água e invadiram os salões com as baionetas caladas comandadas por um coronel enfurecido. Saímos como um pobre exército Brancaleone, sem o apoio do próprio Congresso.
Para que vale, então, o Congresso? Lembro-me de que certa noite, exilado no Chile, o presidente Eduardo Frei me sugeria que talvez o sistema parlamentar já estivesse caduco, perempto e inoperante e que, possivelmente, o Estado moderno teria que encontrar outra forma de representação. Creio que os ex-deputados Plínio de Arruda Sampaio e Paulo de Tarso, de São Paulo, dois homens públicos exemplares, ouviram também a mesma reflexão de nosso amigo Frei em alguma oportunidade daqueles dias de nosso exílio.
De todo modo, há uma certeza generalizada de que, enquanto não se encontra uma nova forma de representação, vale a pena manter o Congresso, que, segundo o julgamento do velho Churchill, é o pior sistema de governo, mas ainda não se descobriu outro melhor. E afinal, que perfil têm nossos congressistas de hoje? De onde vêm hoje os representantes do povo? São eles melhores ou piores que os de ontem?
Nos anos 60, isto é, ontem, eu mesmo tentei, com dois outros companheiros de Câmara, esboçar uma pesquisa perfunctória sobre a origem dos parlamentares da época. O resultado foi surpreendente: mais de 60% dos deputados eram oriundos de famílias do tempo do Império. É de crer que esses dados estejam hoje completamente ``bouleversados". Para bem ou para mal, as novas figurações sociais do país invadiram a Câmara, especialmente no sul, no centro-sul e nas regiões pioneiras desse faroeste dos antigos territórios transformados em Estados.
As bancadas daquilo a que a antiga discriminação denominava de ``oriundi" talvez sejam mais numerosas que as de quatrocentões ou brasileiros antigos. Os nomes alemães, italianos, sírios, libaneses, judeus e japoneses adornam todos os partidos representados, nas mais inesperadas composições.
De repente, o último Andrada sobrevivente na selva eleitoral senta-se, na bancada de seu próprio partido, entre um árabe sagaz e eficiente, que é até seu líder, e um jovem judeu, robusto de corpo e dizem que de bolsa, o deputado Moisés Lipnik.
Seu nome e sua presença são um emblema das metamorfoses do processo eleitoral brasileiro. Filho de um prestigioso banqueiro dos Estados Unidos, nasceu na Colômbia e formou-se em São Paulo, onde foi deputado estadual. Transferiu-se para as Califórnias tropicais da Amazônia, radicou-se em Rondônia, ali plantou empresas e colheu o mandato de deputado federal mais votado do país, em termos relativos.
Não vem ao caso indagar se esse tipo de mandato se insere no prodígio dos custos eleitorais brasileiros, os mais altos do mundo. Dificilmente alguém se elege com menos de US$ 1 milhão em qualquer Estado. De resto, nem sempre os votos caros são menos limpos que os votos baratos de certos demagogos das periferias metropolitanas.
Não se pretende aqui um confronto entre o Congresso de ontem e o de hoje, embora se deva reconhecer, como no refrão espanhol de Juan de Mairena, que ``todo tiempo pasado fué mejor". Mas é sempre possível supor que ainda se fazem líderes parlamentares como antigamente. No Senado ainda há nomes, ungidos pela vocação, pelos talentos e pelo destino, como o do presidente da Casa, o escritor José Sarney, cuja presença de estadista honraria qualquer Parlamento do mundo.
Ali também está o representante mais alto da ``Realpolitik" deste país, o senador Antônio Carlos Magalhães, em cuja personalidade parecem vivos certos traços de grandeza que o Senado antigo conheceu num Bernardo de Vasconcelos ou num Pinheiro Machado.
De resto, a Bahia é um Estado privilegiado nesta legislatura, com o contraponto egrégio do sr. Josaphat Marinho e com a presidência da Câmara, ocupada por um jovem deputado correto e limpo.

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