São Paulo, sábado, 15 de julho de 1995
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Grupo se especializa em `caça' aos torturadores

`Brasil: Nunca Mais' completa dez anos como principal fonte

EMANUEL NERI
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma pequena nota em um boletim do Exército deu o primeiro alarme. Dizia que o coronel Armando Avólio Filho, 50, exercia há mais de um ano o cargo de adido militar da Embaixada do Brasil em Londres.
Alertada por um amigo que lera a notícia, Cecília Coimbra, presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio, começou a caça a Avólio -seu nome constava das listas de torturadores do regime militar (1964-1985).
A primeira iniciativa de Cecília, psicóloga de 54 anos que foi presa e torturada no regime militar, foi mandar telefonar para a embaixada e confirmar a notícia.
``O Avólio é um gentleman", respondeu uma assessora da embaixada. Em inglês, ``gentleman" quer dizer pessoa de boas maneiras, de boa educação.
A caça a Avólio começou em 15 de maio, quando Cecília enviou carta a Fernando Henrique Cardoso dizendo que a presença dele na embaixada ``mancha e envergonha nossa história".
Pressionado por organismos internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional, o governo resistiu só por 15 dias. Em 1º de junho, o afastamento de Avólio foi anunciado.
Avólio é um dos muitos casos de caça a torturadores deflagrado após os governos militares. Grupos de direitos humanos prometem guerra sem trégua aos que ocupam cargos públicos de confiança.

Caçadores de nazistas
O estilo lembra o dos caçadores de nazistas. ``Aonde estiverem, nós vamos procurá-los, identificá-los e denunciá-los", diz Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos.
Curiosamente, a caça começou em um governo supostamente de esquerda. No primeiro governo de Leonel Brizola (PDT) no Rio, em 1985, o Tortura Nunca Mais revelou que o coronel Walter Jacarandá, indicado para diretor do Corpo de Bombeiros, era torturador.
Quando a foto de Jacarandá saiu nos jornais, o então secretário de Transportes, Brandão Monteiro, jogou mais lenha na fogueira: ex-preso político, afirmou que Jacarandá exercia o ``ofício" de torturar com ``perfeccionismo e entusiasmo". Jacarandá perdeu o cargo.
Foi o primeiro passo para que o Tortura Nunca Mais se credenciasse como principal grupo de caça a torturadores. Trinta deles já foram "abatidos.
Vale tudo nessa guerra. Mas as fontes são jornais e os diários oficiais dos Estados. Helena Grecco, 79, do Tortura Nunca Mais de Minas Gerais, vasculha as páginas de nomeações em todo início de governo.
Grecco tem cuidado especial com as páginas sobre nomeações para áreas de segurança pública. São nesses órgãos que costumam se alojar os torturadores.
Identificado um torturador, o caminho é quase sempre o mesmo. A principal fonte de consultas é o projeto ``Brasil: Nunca Mais", o documento mais completo sobre a tortura no Brasil, que completa hoje dez anos. Na 27ª edição, já vendeu mais de 200 mil exemplares.
Coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, o ``Brasil: Nunca Mais" traz o nome de 28 mil pessoas envolvidas no aparato repressivo do regime militar. A parte mais importante é a lista com 444 torturadores.
A segunda etapa da caça ao torturador é a chamada execração pública. Dossiês com seus históricos são enviados a autoridades e a outros alvos.
Uma delas são as redações dos jornais. Dependendo do peso político do torturador, os dossiês podem atravessar fronteiras e bater à porta de grupos como a Anistia Internacional, em Londres, como no caso de Avólio.
Os caçadores têm outros importantes aliados, como o SOS Torture, da Suíça, e o Human Rights Watch, principal grupo americano de defesa de direitos humanos, que acaba de abrir escritório no Brasil.
Na malha fina da caça aos torturadores, caem os mais diferentes tipos de pessoas. Em 1989, foi a vez do advogado João Lucena Leal. Ele foi identificado ao defender os assassinos do seringueiro Chico Mendes.
Consta do ``Brasil: Nunca Mais" que Leal torturou presos políticos em Fortaleza, quando era da polícia (1970-1973). Outro que entrou no alvo, sem ser abatido, foi o coronel Dalmo Lúcio Muniz Cirillo.
Apontado como torturador pelo ``Brasil: Nunca Mais", Cirillo foi condecorado em 1993 por Itamar Franco com a medalha de Cavaleiro da Ordem do Mérito das Forças Armadas.

Novos alvos
O regime militar não é o único alvo do grupo. Hoje, faz campanha para o Exército punir os responsáveis pela morte do cadete Márcio Lapoente, 18.
Lapoente morreu por maus-tratos em 90, em treinamento na Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende (RJ). O capitão Antônio Carlos de Pessoa foi condenado a três meses de prisão, mas cumpriu pena em liberdade.
A caça aos torturadores não tem fronteiras. Durante entrevista em uma praça de Assunção, em 1985, Jaime Wright, coordenador do ``Brasil: Nunca Mais", revelou que o então embaixador do Brasil no Paraguai, Mário de Mello Mattos, era torturador.
Mattos, que era general do Exército, morreu após deixar a embaixada. Segundo o ``Brasil: Nunca Mais", ele torturou quando era coronel do 1º Regimento de Obuses, no Rio.
A caça conta às vezes com a ajuda de ex-inimigos. Quando Roberto de Araújo Porto assumiu a direção da Polícia Federal em Pernambuco, em 93, policiais ajudaram a derrubá-lo. Segundo o ``Brasil: Nunca Mais", Porto torturou em 70, na PF do Ceará.

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