São Paulo, sábado, 15 de julho de 1995
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Congresso protege aquário de tubarões

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Pergunto: há quanto tempo o leitor não ouve falar no Estado de Direito, Estado Democrático, assim com maiúsculas? O leitor responderá que não ouve falar neles desde que a democracia voltou a funcionar no país, ora.
Quem se livra de um regime totalitário, como aquele que nos governou de Castello a Figueiredo, não vai passar o resto da vida falando no assunto.
Recuperamos a saúde, aí está, e não há por que ficar relembrando, uma vez recuperado o bem-estar, o estado de doença. Tratamos agora de viver a vida em sua plenitude. O Estado de Direito é a saúde perfeita.
Só quem parece pouco convencido do que diz perde tempo afirmando que está bem, está normal, sem médico e sem remédio. Sabemos que o Estado ficou direito porque vivemos saudáveis e despreocupados.
Tão saudáveis e despreocupados quanto esses ensolarados rapazes da praia nordestina de Candeias, na Boa Viagem, que vão para o mar com suas pranchas de surfe. Não estão indo, pasta debaixo do braço, para o trabalho. Não estão nem indo à pesca. Saem com suas pranchas para viverem a vida, para momentos de puro lazer.
Muitos irão mais tarde à escola, a um escritório. No momento, parodiando Rubem Braga, querem ir à praia para sentir depois a alegria do prazer cumprido. E de viverem num país democrático, onde, desde que não avancemos em território alheio, é tudo nossa praia.
Aliás, por temperamento, por um certo descuido feliz com que olhamos a vida, saímos pensando exclusivamente no mar, em abrir uma renda de espuma na prega da onda.
Acontece, porém, que, apesar de reinar também no mar nosso Estado de Direito, ele parece só estar valendo até a arrebentação. Quem vai buscar a onda além, mais para o fundo, é como se infringisse um direito não-escrito, o dos tubarões.
Outro dia vi, na televisão, os companheiros do surfista morto, quase esquartejado, por tubarão, queimando na areia suas tábuas de surfe.
E adiante, nesse mesmo programa, que até então tinha sido tragicamente iluminado pela pira das pranchas ardentes, já reapareciam ao fundo, pela espuma flutuante de ondas longínquas, outros surfistas, confiantes, desdenhosos, convencidos de que aquele tubarão assassino era o último remanescente de uma espécie extinta.
Ou tratava-se apenas de surfistas fatalistas, meio desmiolados, convencidos de que, por mais que nos esforcemos, jamais nos livraremos dos tubarões, que sempre infestarão os mares do nosso Estado de Direito?
Parecem inextinguíveis, os tubarões, ágeis a despeito do tamanho, com aquelas bocarras que abrigam verdadeiros serrotes de dentes serrilhados. ``Jaws!", como naquele antigo filme de Spielberg.
O ``Jornal do Brasil" do começo desta semana publicou uma lista impressionante de tubarões do Congresso, vários daquela espécie que o Lula divulgou como tubarões-picareta, tal a capacidade que têm de ir fundo no corpo do surfista.
É a lista dos 31 parlamentares que no Congresso vivem ``sob suspeita". É só o leitor pensar numa suspeita que vai encontrá-la, pregada como um crachá, no peito de um dos 31 -do homicídio ao insulto pessoal. Lá estão morte, corrupção em extrema variedade, desvio de verbas, invasão de terra pública, poluição de rio, peculato, estelionato, vigarices variadas.
O Supremo Tribunal Federal se queixa do extremado corporativismo do Congresso, que não dá licença para processar nenhum daqueles santos, e Fernando Lyra (PSB-PE) comenta: ``Nos meus tempos de Congresso foram raríssimos os casos de licença para processar parlamentares".
Por outras palavras, quem quiser desfrutar no Brasil dos seus direitos, limite-os voluntariamente, queimando a prancha de surfe e tomando banho de areia. Para lá da arrebentação brasileira, o mar é zona de caça reservada dos tubarões.
O curiosíssimo na lista do ``JB" é que entre os 31 parlamentares nem sequer figura o senador Ronaldo Cunha Lima, que em 1993, quando governava o Estado da Paraíba, descarregou seu tresoitão na cara do ex-governador Tarcísio Burity.
Ronaldo Cunha Lima (que é poeta, seresteiro, conhecido pelos eleitores mais apaixonados como Ronaldo Coisa Linda) cavou sua isenção de tubaronato antes de tomar assento no Senado. E me valho desta oportunidade para publicar o telegrama com que me honrou a vítima da tentativa de assassinato de Cunha Lima, o ex-governador Burity. Publico e peço licença para explicar porque só agora sai o telegrama.
Coincidiu sua chegada com meu recente período de férias e houve ainda confusão no recebimento de minha correspondência enviada à Folha. O telegrama dá uma justa medida da magra fatia que nos cabe de um verdadeiro Estado de Direito e mesmo de comezinhos direitos humanos à vida e à integridade pessoal.
Eis o telegrama de Tarcísio Burity:
``Desejo transmitir a Vossa Senhoria minhas felicitações em virtude do corajoso, lúcido e oportuno artigo pela Folha dia 27 deste mês fazendo referência ao crime de tentativa de homicídio qualificado cometido a 5 de novembro de 1993 pelo então governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, contra minha pessoa, de forma premeditada, covarde e bárbara.
``Na ânsia de justificar o injustificável o autor do crime tentou encontrar razões de ordem pessoal para praticá-lo. Se aqueles foram os motivos, ele atirou na pessoa errada, pois nada, absolutamente nada que ele alegou aconteceu, conforme ficou abundantemente provado nos autos da investigação realizada pela Polícia Federal e tecnicamente aceitos pela Procuradoria Geral da República.
``Apesar da brutalidade do fato, optei pela via judiciária como único caminho adequado à solução do problema. Infelizmente a frouxidão de nossas leis processuais permite procrastinação quase indefinida do hediondo caso no Superior Tribunal de Justiça em Brasília, pois até hoje o agressor nem sequer foi citado juridicamente.
``Pior ainda: eleito apenas com 26% de votos para senador, situação equivalente a duas vezes menos os votos em branco para o mesmo cargo, continua desfilando sua impunidade, debochada e atrevidamente, numa afronta vergonhosa à consciência moral e jurídica dos cidadãos brasileiros.
``Cordialmente, Tarcísio Burity."
Recebi ainda uma sentida carta de Campina Grande, assinada por dona Maria Francisca Torres Loiola, que me garante que Cunha Lima ``é homem extremamente gentil e educado, que nunca respondeu a ninguém grosseiramente" e que ``foi vítima de uma armadilha do destino que o fez cometer um gesto tresloucado".
Em nenhum país que respeite os direitos humanos alguém pode gesticular pelo cano de um trinta-e-oito sem ser preso e julgado depois.

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