São Paulo, sábado, 15 de julho de 1995
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Mostra alemã contesta força das bienais

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um evento pequeno e inteligente, que mostra que a mania de grandeza das bienais é a razão de sua atual decadência, está pondo a cidade de Erfurt, Alemanha, no mapa artístico internacional.
A Configura, realizada anualmente, lembra a Documenta de Kassel, cidade a 150 km de Erfurt, no centro do país, um evento quadrienal muito importante para a definição da arte contemporânea.
A semelhança está no modelo, que é o de escolha de artistas internacionais em destaque, mas a Documenta é, para o mal, bem mais ambiciosa -como mostra artigo de duas páginas na revista ``Der Spiegel" da semana passada.
A Configura começou no ano passado. Este ano o tema escolhido para a edição iniciada em 28 de junho é ``Diálogo da Cultura". O evento nasce, portanto, sob o signo do multiculturalismo, disposto a quebrar a hegemonia do Primeiro Mundo na produção estética.
``Na era da globalização da economia e da cultura, já não se pode falar em cultura `ocidental', por exemplo", diz o curador Peter Mõller, em entrevista à Folha por telefone. ``Temos de perder esses vícios de classificação da arte."
Mõller e outro curador, Detlev Pilz, deitam o olho sobre a arte não-européia. Seu mérito é fazer isso de maneira analítica, sem busca de pregações étnicas.
A Configura 2 reúne nove países: Brasil, China, Egito, EUA, Índia, México, Nigéria, Rússia e Grécia, o único europeu. Os países com mais representantes são Egito (38), México e EUA (20). Ao todo são 127 artistas plásticos.
Entre os 11 brasileiros há três estrelas: Antonio Dias, Tunga e Lygia Pape. Há nomes com reputação: Cecilia de Medeiros, Jorge Barrão e Alex Flemming. E cinco pouco conhecidos: Farnese Andrade Neto, Betty Leirner, Cristina Maria Pape, Luciano Vinhosa Simão e Antonio Manuel da Silva Oliveira. Medeiros, Dias, Leirner e Flemming vivem na Alemanha.
Para Mõller, ``a arte brasileira é certamente uma das mais interessantes da atualidade". Ele a considera uma prova firme de que a boa arte já ``não tem fronteiras".
Discursos à parte, a Configura -a julgar pelo catálogo- é viva porque faz uma leitura atenta da arte contemporânea, e não serve a ela como ``ONU" (modelo das bienais de Veneza e de São Paulo) ou a interpreta por um ângulo só (como a Documenta de Kassel).
O melhor é a divisão do evento em seções: ``Altar da Cultura", ``A Mesa Pensante", ``Magia das Coisas" e ``Imagens do Homem".
Em ``Altar da Cultura", os artistas trabalham -sempre de modo crítico ou irônico- em cima de signos típicos. Assim, o indiano Rimzon apanhou um vaso de cerâmica antigo e colocou sobre ele uma pequena espada curva, ironizando a tradição como imposição.
Pelo Brasil, Dias pendurou falos de vidro no teto, alguns cheios de vinho, outros de água, como se o pênis e sua impulsão pelo sangue fossem o condutor de toda ascese.
Já o americano Ron Baron trata objetos dos esportes de seu país (tacos, capacetes, bolas, camisas e troféus) como se fossem relíquias num armário, artefatos de uma cultura de massas mitificante.
A seção seguinte lida com outro endereço da comunhão social e religiosa: a mesa de refeição, à qual a família teoricamente restauraria a vida por meio do convívio.
Teoricamente. Segundo a ironia comum às obras, a ocasião na realidade serve à corrupção sexual (Grécia), à inversão do bem-estar (Índia), à morte (México), à fome (Nigéria), à burocracia (Rússia) e à superficialidade (EUA). É a seção mais sugestiva da Configura.
Os objetos, também como veículos do significado usual, é que são desvirtuados na terceira seção. Decoração (adereços), memória (fotos), fetiche (peças religiosas), diversão (bolas), instrução (livros) e praticidade (eletrodomésticos) -todas essas funções são denunciadas e ridicularizadas.
Nada mais são do que simulacros da futilidade e covardia que, segundo essa arte, seriam o pão nosso do cotidiano humano.
A seção final se volta contra a última fronteira da identidade: o corpo. Bonecos quebrados, correntes e mordaças, podridão orgânica, distorções -tudo satiriza as pretensões de inocência e aponta em seu lugar a frustração sexual.
O que se deduz da Configura 2, portanto, é que a arte contemporânea está atingindo neste fim de século o niilismo. Para ela, tradição e desejo são forças que se chocam a todo instante, resultando na impossibilidade de qualquer convívio. Pátrias, famílias, objetos e corpos não passam de opressões.

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