São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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Esquerdas burras...

ROBERTO CAMPOS

``O petacutisno infiltrado na administração brasileira é um gênero animal com duas espécies: os xiitas e os xaatos"
(De um observador diplomático europeu em Brasília)

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso foi dizer que as esquerdas são burras, e o vespeiro está ouriçado. Celeuma à toa, porém. Isso já faz tempo que não é segredo para ninguém. Até que Fernando Henrique foi suave, como é seu estilo. Não disse que são totalitárias. Esquerda é um termo balaio onde se pode botar de tudo. No Brasil, passou hoje a juntar os que, contra as modestas propostas saneadoras do governo, defendem privilégios corporativos, indisciplina fiscal e financeira, monopólios e empresas públicas.
No sentido familiar da palavra, diz-se que é ``burro" quem não é capaz de entender argumentos, de assimilar informação, de tirar as conclusões apropriadas dos dados recebidos de um contexto. Nesse sentido, serve como uma luva para os nostálgicos do dirigismo marxista, também chamados de neoconservadores.
Fernando Henrique provavelmente estava desabafando a respeito dos trapalhões que, embuchados com idéias que não conseguem digerir, querem sentar em cima da modernização do país. Se, porém, esquerda for uma espécie de religião, então é uma questão de fé, extra-racional. O que parece burrice visto de um jeito, vira fanatismo visto de outro. O que, aliás, não melhora nada as coisas.
De modo geral, o que caracteriza a noção de esquerda no mundo moderno -especialmente o seu paradigma marxista- é a idéia de que a ação política permite criar uma nova ordem social ideal, em que para todos haverá abundância material. Isso reflete uma visão mágica do mundo, que ficou fora de moda neste ponto da evolução histórica, em que os homens superaram o universo mágico e ingressaram numa era operacional, quantificada, técnico-científica.
A versão marxista, de longe a mais importante, é um dos mais perfeitos exemplos imagináveis do pensamento mágico, paramentado (como exigia a época) de teoria científica da História. Começava por uma noção parecida com o maná enviado do céu pelos deuses. Acreditava que o problema da escassez já havia sido resolvido pelo capitalismo -e, portanto, se não existisse abundância para todos, a culpa era da sociedade, isto é, do capitalismo.
Em outras palavras, é porque as forças do mal o impediam. O mal entra, assim, na História. A diferença é que em vez de fazê-lo sob a forma de um trabalho de caboclos malignos, assume o aspecto de uma classe inerentemente malévola, a burguesia. Esta seria vocacionada, pela própria natureza, a espoliar até a mais negra miséria, as forças do bem, a classe boa dos proletários (da qual Marx, violentamente preconceituoso, anti-semita e intolerante, excluía a tudo o que cheirasse a lúmpen, a marginal). A redução de tudo a uma oposição entre bons e maus é a própria essência do fenômeno totalitário...
São óbvias as conotações mágico-religiosas dessa concepção. A luta entre o bem e o mal, no fim, seria resolvida pela grande catarse revolucionária, que abriria o portal do paraíso. A ação revolucionária teria também efeitos mágicos, porque bastaria expropriar os expropriadores (pela violência purificadora) para que, eliminada a propriedade privada dos meios de produção, os homens entrassem em estado de fraternidade universal, assegurando abundância material pela correção das imperfeições do mercado.
Marx, o profeta, não se preocupou em esclarecer analiticamente porque teria de ser assim. E não há como estabelecer qualquer conexão inteligível entre as suas idéias e o universo real da produção e do consumo, onde os fatores são sempre escassos, onde a tecnologia oferece uma estonteante possibilidade de escolhas de funções de produção, e onde é preciso levar em conta as preferências mutáveis dos destinatários finais dos bens e serviços.
Também não se entende por que meios o comunismo obteria de cada um segundo as suas possibilidades -quando o que se observa é que as pessoas apresentam grandes diferenças de produtividade, de motivação, de competência, de formação e inteligência. Só no reino da fantasia é que todos estariam idilicamente dispostos a dar o seu máximo pelo regime -ou por qualquer idéia de bem comum.
E como na vida real não existe Papai Noel -isto é, a abundância não cai do céu de graça- as pessoas têm de ser induzidas a cooperar no esforço produtivo. Na economia de mercado, o esforço é proporcional à intensidade dos seus desejos. No socialismo real, se não respondem às metas do plano, podem ser persuadidos pela polícia, pelo campo de concentração e pelo ``paredón"!
O mercado não tem mistério. Não passa de um vasto leilão, onde cada agente econômico diz o que quer e oferece em troca o que está disposto a dar. Mas esse simples mecanismo assegura o bom funcionamento das complicadíssimas relações de interdependência de uma economia industrial moderna, e o fornecimento das informações relevantes para as decisões dos agentes econômicos.
Sob o socialismo, porém, a quem cabem essas funções? Ao plano e à burocracia que o concebe e executa. Só que esse sistema não funciona, como o mostrou a falência fraudulenta do socialismo real do Leste Europeu. De que modo o burocrata planejador vai conseguir saber, a cada instante, o grau de escassez relativa de cada fator, as preferências do público, e a mais eficiente tecnologia a usar, cada qual com insumos diferentes das outras, e todas em evolução? O mercado é um insubstituível instrumento de coordenação.
As economias socialistas foram sempre economias de comando brutais e ineficientes. Mesmo nos civilizados regimes social-democráticos norte-europeus, que puseram apenas um toque de ruge para enganar a palidez do inverno, e onde os mecanismos do mercado continuaram a funcionar, as queixas contra a arrogância burocrática eram frequentes, e a eficiência econômica foi baixando paulatinamente.
Nos países menos desenvolvidos os problemas são obviamente ainda piores, e o nível de racionalidade menor. Seus governos costumam confundir o enunciado das suas intenções com os resultados que desejam -tipicamente magia simpática. E a demagogia populista vira samba de uma nota só: distribuir. Se falta alguma coisa, não há problema: o governo dá. Se precisar, tira de quem tenha.
No Brasil, os corporativistas das estatais e da burocracia, e os monopólios sindicais, que formam o grosso da desenfreada burguesia do Estado, sentam-se na máquina pública e se agarram aos seus privilégios. Políticos e burocracias governamentais acham muito fácil mexer com o dinheiro alheio. É uma abstração, colunas de cifras em verbas. Quem, nessas condições, irá pensar em termos de resultados, de custos/benefícios?
Religião socialista à parte, a falta de compromisso com a realidade é uma forma de burrice, porque leva ao oposto do que se quer. Assim foi a autodestruição dos regimes socialistas, enquanto continuaram firmes as sociedades capazes de produzir com eficiência e liberdade.
O grande avanço das modernas economias de mercado é que aprenderam a libertar-se dos antolhos ideológicos, e a conciliar a eficiência com o bem estar social, operacionalizando racionalmente a relação fins e meios, mantendo abertos às preferências do público canais alternativos, a saber, os preços do mercado e, no casos de bens públicos extramercado, as decisões políticas. Mas tratando sempre de avaliar os custos de oportunidade que todas as escolhas implicam. Essa é a forma inteligente de fazer as coisas.
Neste país tropical tem muito esperto vivendo da carreira de esquerdismo. Vendem mitos. E querem reserva de mercado...

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