São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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O Plano Real pode ser compatível com o gatilho salarial

EDUARDO FELIPE OHANA; CARLOS EDUARDO DE FREITAS

Parte dos reajustes seria retida em nome do trabalhador como num FGTS
EDUARDO FELIPE OHANA e CARLOS EDUARDO DE FREITAS
O Plano Real explicitou o velho dilema de financiamento da economia brasileira. Com vastos contingentes populacionais economicamente carentes, qualquer movimento de distribuição direta de renda reduz a taxa de poupança privada. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, o governo tende a gastar tudo o que arrecada, e até mais.
Por outro lado, o Brasil precisa investir, anualmente, pelo menos 19% a 20% do seu PIB, para ter crescimento sustentado de 5% ao ano para cima. A taxa de investimento do setor público consolidado (governo federal, governos estaduais e municipais, além de todo o universo de estatais) anda ao redor de 3,5% do PIB. Logo, o investimento privado deve atingir, no mínimo, 15,5% do PIB. A questão, é, portanto, de como financiar todo esse investimento.
No período imediatamente antecedente ao lançamento do Real, a taxa de investimento privada era de 12% do PIB, o déficit operacional do setor público consolidado de quase 2% do PIB e o superávit do balanço de pagamentos em transações correntes, equivalente ao investimento brasileiro no exterior, de 1% do PIB.
Isto tudo exigia financiamento da ordem de 15% do PIB, dos quais 12% do PIB vinham da poupança privada genuína, e 3% do PIB, do imposto inflacionário (poupança privada forçada de caráter confiscatório).
Passada a crise da dívida externa, não há razão para o Brasil continuar investindo no exterior. Ao contrário, o natural é que o resto do mundo invista aqui, ou seja, que se materialize um déficit em transações correntes. O problema é que os investidores externos impõem limites a esse financiamento.
Qual então o valor do déficit em transações correntes que o Brasil poderia sustentar a longo prazo? Com um nível prudente de reservas internacionais, poderíamos arriscar um palpite: 1% do PIB, em média. Dadas as dimensões atuais da dívida externa, um déficit desta ordem de grandeza resultaria numa relação dívida/PIB levemente decrescente ao longo do tempo.
Assim, se antes havia um superávit externo de 1% do PIB, e admitimos que se pode passar a um déficit do mesmo valor, ganha-se aí 2% do PIB, que não precisariam mais ser financiados. Em outras palavras, tudo o mais constante, o imposto inflacionário poderia cair de 3% para 1% do PIB.
Ocorre que ele efetivamente caiu para 0,5% do PIB e, ao mesmo tempo, o investimento privado pulou para 15,5% do PIB, com a abertura das oportunidades oferecidas por um ambiente macroeconômico estável e a puxada da demanda de consumo, induzida em grande parte pelos efeitos redistributivos do corte dramático do imposto inflacionário.
Trata-se, então, de manter o investimento privado em 15,5% do PIB e o imposto inflacionário em não mais que 0,5% do PIB (inflação de, no máximo, 2% ao mês), e, simultaneamente, conter o déficit do balanço de pagamentos em transações correntes em 1% do PIB (ele esteve ao redor de 3,5% do PIB entre o 4º trimestre de 94 e o 1º de 95).
Ou seja, grosso modo, dispõe-se de 1,5% do PIB (balanço de pagamentos mais imposto inflacionário) para financiar 15,5% de investimento privado e 2% de déficit operacional. Se a poupança privada gera normalmente 12% do PIB de recursos genuínos, como arranjar financiamento interno adicional no valor de 4% do PIB?
A velha receita dos economistas manda buscar esse dinheiro no setor público, isto é, resolver o problema através do governo. No caso brasileiro, tal solução implicaria inverter o sinal das contas fiscais consolidadas -de um déficit operacional de quase 2% do PIB, passar a um superávit de mesma monta. O superávit primário requerido por este exercício seria de pelo menos 5% do PIB.
Ora, num país onde falta esgoto nas principais cidades e os déficits de educação, saúde e moradia são enormes, sem falar na fome etc., é ilusão pensar que acréscimos de arrecadação não se traduzirão em crescimento automático da despesa pública. Não é à toa que até hoje os economistas ficaram falando sozinhos nessa matéria.
Logo, torna-se necessário elevar a poupança privada. Tradicionalmente, os sucessivos regimes políticos brasileiros têm resolvido essa questão pela via da concentração da renda e da riqueza. Na República de 46, uma estrutura sindical incipiente facilitou a absorção de mão-de-obra a custos relativamente baixos, ao tempo em que a ausência de memória inflacionária lubrificava os canais de arrecadação do imposto inflacionário.
Durante o ciclo autoritário, funcionou o que se poderia chamar de confisco direto do salário. O movimento sindical foi banido e estabelecida uma legislação que freava o crescimento do salário real.
Tais esquemas estão esgotados. Por isso o dilema. A saída que se sugere ainda apresentaria traços de compulsoriedade, no sentido de restringir o consumo imediato dos assalariados, mas não seria confiscatória, permitindo aos trabalhadores a apropriação dos resultados do seu esforço de poupança. Vejamos como.
Em vez da livre negociação sugerida pelo governo, poderíamos ter uma lei salarial que garantisse o repasse integral para os salários da inflação ocorrida entre as datas-base. A idéia comportaria, inclusive, um gatilho, na hipótese de a inflação superar determinado nível ao longo de algum trimestre entre a datas-base, quando seria antecipada a inflação daquele trimestre.
A diferença é que parte dos reajustes (10% ou 20%) seria retida, em nome de cada trabalhador, num fundo -o Fundo de Garantia da Poupança (FGP)-, cuja liquidez seria determinada à luz da experiência do FGTS.
Idealmente, o FGTS seria incorporado a esse novo fundo, com uma administração exclusivamente privada e profissional, e liberdade para aplicação dos recursos, sem vinculações.
Exemplificando, se a inflação em um ano fosse de 36%, e o salário na data-base inicial de R$ 100,00, o novo salário seria de R$ 136,00, mas R$ 7,20 (20% do reajuste) seriam creditados ao trabalhador, junto ao FGP, em vez de pagos diretamente em dinheiro.
No caso do gatilho trimestral, de modo a assegurar o elemento anticíclico da idéia e derrubar a inflação que estaria ameaçando subir, a retenção do FGP poderia ser maior, digamos, de 30%.
Assim, se a inflação alcançasse 10% num determinado trimestre, e este fosse o piso do gatilho, o salário passaria de R$ 100,00, como no exemplo anterior, para R$ 110,00, com R$ 107,00 pagos em dinheiro e R$ 3,00 recolhidos ao FGP, para uso do próprio trabalhador sob as condições que fossem estipuladas.
A livre negociação, com suas características eminentemente pró-cíclicas, não garante a renda e o patrimônio do trabalhador. Se a economia esfria, ele perde poder de barganha e os reajustes caem abaixo da inflação. Se a economia aquece, ele ganha poder de barganha e obtém aumentos reais. Mas estes acabam sendo ilusórios, porque as empresas os repassam aos preços. A substância dos reajustes é então corroída pelo aumento da inflação.
O expediente de abrir a economia para cortar este círculo vicioso tem fôlego curto, como o demonstrou a experiência recente do Plano Real. Bate-se rapidamente nas limitações do financiamento do balanço de pagamentos. Assim, sem poupança doméstica, o ritmo de crescimento da economia oscila como em um processo do tipo ``stop and go".

EDUARDO FELIPE OHANA, 44, economista, é consultor econômico. Foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1993) e coordenador de macroeconomia do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 1987 a 91.

CARLOS EDUARDO DE FREITAS, 51, economista, é professor e coordenador da Escola de Pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (DF). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1993) e diretor da área externa do Banco Central (1985-88).

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