São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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UMA COMÉDIA INTELECTUAL

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A editora Gallimard começou, em 1987, a publicar integralmente o texto dos "Cahiers", de Paul Valéry (1871-1945). Os cinco volumes já editados, o último dos quais é de 1994, abrangem apenas o período entre 1894 e 1914, o que significa que ainda faltam 31 anos de escrita ininterrupta, pois as últimas anotações do autor foram feitas às vésperas de sua morte, em 20 de julho de 1945.
Publicar integralmente significa não apenas a edição do texto completo -o que não acontecia com a utilíssima edição, em dois volumes, na Bibliothèque de la Pléiade da Gallimard (1973-1974)-, como ainda a reprodução das numerosas ilustrações do próprio Valéry para as suas anotações diárias.
Mas os "Cahiers" não são diários de acontecimentos biográficos, em que a vida pessoal do autor seja revelada ao leitor curioso, mas notas fragmentárias de uma reflexão, de uma inteligência que sem descanso buscava, pela escrita, relações de analogia entre os campos de conhecimento mais diferentes: psicologia, matemática, física, biologia, fisiologia, poética, história, política, literatura.
Por isso mesmo, não é de espantar que, em 1983, fosse publicado em Paris, organizado por Judith Robinson-Valéry, nora do poeta e editora dos dois volumes da Pléiade, um volume que, sob o título de "Fonctions de l'Esprit", trazia textos de "13 sábios", como está dito no subtítulo, que "redescobriam" Paul Valéry. E estes "sábios" não eram críticos literários ou poetas, mas físicos, neurologistas, matemáticos, fisiologistas, filósofos, um Prêmio Nobel de Química -Ilya Prigogine- e o teórico do Caos -René Thom.
Leitores de Valéry, ou mesmo um interlocutor, como é o caso do neurologista Ludo van Bogaert, antigo presidente da Federação Mundial de Neurologia, todos são unânimes em afirmar a atualidade de Valéry -sobretudo o dos "Cahiers"- para as suas áreas específicas de atuação.
No mesmo ano em que começava as anotações para os "Cahiers" (1894), e que, depois, somarão um conjunto de 29 volumes (publicados numa edição fac símile entre 1957 e 1961 e que existem na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo), Valéry redigia duas outras obras: "Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci", publicada em 1895, e "La Soirée avec Monsieur Teste", de 1896.
Na primeira, além de revelar o seu aprendizado com o pensamento, por assim dizer, analógico de Da Vinci, em que arte e ciência confluem nas anotações especulares do artista italiano -e este será o modelo do próprio Valéry para os "Cahiers"-, estabelecia uma maneira de ler autores e obras, em que o que se procurava era antes uma ação poética do que uma personalidade criadora, que será essencial para o futuro autor dos cinco volumes de "Variété".
Quer a leitura de Da Vinci, quer as leituras que fazia de Poe e Mallarmé ou Descartes, tanto quanto a sua própria atividade como poeta, convergem para a criação ficcional de Teste, a primeira expressão -em prosa, pois já havia escrito e publicado o seu primeiro poema de uma série de textos sobre Narciso ("Narcise Parle")- daquilo que a estudiosa Elizabeth Sewell chamou de "mente no espelho": expressão de uma mente em busca implacável de consciência, embora sabendo das inconstâncias e variáveis nas relações entre o inteligível e o sensível.
Mais tarde, Valéry falará de uma Comédia Intelectual que viesse se juntar, para ele com vantagem, às de Dante e Balzac: certamente o "Monsieur Teste" seria um capítulo fundamental desse projeto apenas sonhado.
Creio que a primeira vez que aparece, na obra de Valéry, uma referência a essa Comédia, está precisamente no texto sobre Da Vinci, "Note et Digression", de 1919: "Eu via nele (Leonardo) o personagem principal desta Comédia Intelectual que não encontrou até aqui o seu poeta, e que seria para meu gosto bem mais preciosa ainda do que `A Comédia Humana', e mesmo do que `A Divina Comédia' " .
E a última referência, bem mais explícita e elaborada, está no ensaio-conferência sobre Voltaire, de 1944: "Acontece-me muito frequentemente sonhar com uma obra singular, que seria difícil de fazer, mas não impossível, que alguém algum dia fará, e que teria lugar, no tesouro de nossas Letras, junto à `Comédia Humana', de que seria um desejável desenvolvimento, consagrada às aventuras e às paixões da inteligência. Seria uma Comédia do Intelecto, o drama das existências dedicadas a compreender e a criar. Ver-se-ia ali que tudo o que distingue a humanidade, tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas é a existência de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos operários o que viver".
Antes da publicação do ensaio sobre Leonardo, da criação de Teste e das primeiras anotações dos "Cahiers", tudo acontecendo entre os anos de 1894 e 1896, Valéry havia já publicado, em revistas como "Conque", "Centaure", "Syrinx", "Ermitage" ou "Plume", poemas, ou "ensaios de poemas, como ele preferia chamá-los, e que depois, alguns, serão reunidos em sua primeira coletânea de poesias, "Album de Vers Anciens 1890-1900", que ele lia e discutia com seus amigos parisienses Pierre Louys e André Gide, enquanto ainda vivia em Cette, (depois Sète), conforme atestam as numerosas e intensas correspondências trocadas entre os três amigos.
Mas são também desse período o primeiro ensaio de Valéry, "Sobre a Técnica Literária" (uma leitura da poética de Poe, de 1889), e traduções de um soneto de Dante e de uma canção de Petrarca, ambas sob o pseudônimo de M.D., na revista "Chimère", em 1892.
Não será a última vez que Paul Valéry enfrentará a tradução de autores clássicos: entre 1942 e 1944, trabalhará na tradução das "Bucólicas", de Virgílio, cuja publicação será precedida de uma notável introdução sobre os problemas gerais da tradução de poesia.
Sabe-se hoje que é também de 1889 -data de seu primeiro ensaio- um esboço de conto realizado por Valéry, o "Conte Vraisemblable", publicado em 1957 por Octave Nadal.
Na verdade, 11 desses contos, que permaneceram inéditos, foram reunidos no volume "Histoires Brisées" e publicados por Gallimard em 1950.
Deste modo, hoje é possível ter uma imagem mais complexa do Paul Valéry dos primeiros anos de atividade criadora: tanto o poeta dos "ensaios de poemas" que comporão o "Album de Vers Anciens" ou o tradutor de poesias quanto o ensaísta de Leonardo ou o ficcionista dos contos e do "Monsieur Teste".
Depois da publicação desta última obra, em 1896, e já residindo em Paris desde 1894, inicia-se para Valéry um longo período de silêncio poético, mas não de reflexões, como dão prova as páginas dos "Cahiers", abrigando, sem interrupção, suas inquietações intelectuais, ou mesmo um texto importante e premonitório, de 1897, como "La Conquête Allemande' (depois republicado com o título de "Une Conquête Méthodique"), sobre o expansionismo germânico.
Todo o período de 20 anos de silêncio poético e de intensa reflexão é, ao menos publicamente, rompido com a publicação, em 1917, do longo poema "La Jeune Parque' -A Jovem Parca- (do qual existe uma notável tradução brasileira realizada por Augusto de Campos, incluída no livro "Linguaviagem", editado pela Companhia das Letras em 1987). Embora, na dedicatória do poema a André Gide, fale de "La Jeune Parque" como "exercício", a publicação do texto foi de importância decisiva para a imagem do poeta: recebido com enorme entusiasmo pelos que se dedicavam à poesia e à literatura, lido em diversas sessões públicas, resenhado favoravelmente pela crítica especializada, o poema modificou a vida do poeta.
Por um lado, assegurou a Valéry uma, por assim dizer, personalidade pública, fazendo aumentar o círculo de leitores interessados por sua obra anterior, e, por outro, levou o próprio poeta a rever seus textos, os 21 poemas que comporão o "Album" de 1920.
Mais do que isso, no entanto, o poema realizava a sutura de tudo o que havia sido central em sua existência, fosse a escrita dos ensaios, das anotações para os "Cahiers", das ficções e dos "exercícios de poemas", ou das próprias reflexões que sustentavam todas aquelas atividades.
Deste modo, definido como "exercício" na dedicatória a Gide, ou pensado como despedida a sua poesia anterior, o poema era submetido a rigorosas exigências formais a fim de traduzir tudo aquilo que o longo silêncio poético e as intensas meditações foram sedimentando como desafio intelectual para a continuidade da atividade criadora.
Na verdade, os 512 versos alexandrinos, de rimas emparelhadas, e as estrofes irregulares, se, por um lado, deixam entrever uma construção rítmica e semântica de grande coesão, por outro, não escondem a estrutura fragmentária do poema -já se tem dito que o poema é constituído de três partes incluindo 16 fragmentos-, obrigando a uma leitura também fragmentária que, por sua vez, instaura uma outra referencialidade: aquela que imprime no leitor a sensação de que cada verso, cada relação entre palavras, cada conquista sonora tem um valor de sentido sempre pressentido, sempre adiado, mas sempre presente como possibilidade de linguagem.
E este valor se define porque o poema se oferece, desde o início, como pergunta sobre o gesto primeiro do próprio poema: a consciência que se indaga sobre si mesma pela voz da Jovem Parca, e por isso se divide, é uma consciência de linguagem, arrastando para o espaço do poema o sentido da perda de referencialidade.
Entre a "Harmonieuse MOI" e a "Mystérieuse MOI" (que Augusto de Campos, com enorme acerto, verte por "Harmoniosa MIM' e "Misteriosa MIM", respeitando a fuga de Valéry do "odioso Eu"), que traduzem aproximadamente razão e emoção, ou seja, entre morte e vida -cuja sucessão só se explica e se justifica pela apreensão num espaço de linguagem-, o poema instaura um intervalo, é um intervalo em que os vários e contraditórios "mins" encontram repouso num MIM de diálogo e de aceitação da existência. Sendo assim, se a Parca remete à morte e suas tessituras, a Jovem Parca é ainda um momento de incerteza, de preparação entre a vida e a morte, e termina traduzindo o gesto poético pelo qual é também traduzida.

Continua à pág. 5-10

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