São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

UMA COMÉDIA INTELECTUAL

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

Neste sentido, a Jovem Parca é mais do que um mito para o poema: é o próprio poema. Da mesma maneira que o Cisne de Mallarmé, no soneto "La Vierge, le Vivace et le Bel Aujourd'hui", deixou de ser uma metáfora para o poeta e para o poema, como o era no poema de Baudelaire "Le Cygne", assim o mito clássico, em Valéry, é transformado em estratégia para a pergunta essencial pelo início do poema -traço característico das obras que, no século 20, pretendem continuar a prática da poesia ou da literatura.
Eis, portanto, a medida mais íntima da importância de "La Jeune Parque" para a imagem e a vida do poeta: aquilo que era declaradamente um adeus a experiências poéticas anteriores é também , "et pour cause", o começo de uma linguagem pessoal de experiências com a criação, envolvendo não somente a realização de novos poemas, mas de uma exuberante meditação ensaística sobre ela.
De fato, nos cinco anos que se seguiram à publicação de "La Jeune Parque", Valéry não apenas fez aparecer os poemas revistos para o "Album", como ainda trabalhou nos 21 que comporão a sua segunda coletânea: o volume "Charmes", de 1922.
Dois textos incluídos na coletânea destacam-se pela importância que adquiriram na obra do poeta: "Le Cimetière Marin", publicado em "La Nouvelle Revue Française", em 1920 (de que existem várias traduções brasileiras, a última das quais é a de Jorge Wanderley, de 1974) e "Ébauche d'un Serpent", editado pela mesma revista em 1920 (de que existe tradução brasileira de Augusto de Campos, de 1984).
Estes dois poemas dão bem a idéia do patamar a que chegara a realização poética em Valéry: é a linguagem da poesia articulando as regiões mais diversas e contraditórias de uma personalidade, evoluindo entre emoções, sensações, memórias pessoais e culturais e uma aguda consciência reflexiva acerca do próprio fazer poético.
Sejam as presenças da morte e da vida, do tempo e do espaço, do absoluto e do relativo, da imobilidade do cemitério ou do eterno retorno e continuidade do mar, como está no "Cemitério Marinho", sejam as dramáticas situações dos limites e das consequências do conhecimento intelectual às voltas com a sensualidade e o desejo, emblematizadas pela figura onipresente da serpente, como no "Ébauche d'un Serpent", tudo é recolhido pelo exercício de uma linguagem poética que se propõe como condição absoluta de uma possibilidade de dizer seja o que for enquanto comunicação, isto é, para repetir uma formulação posterior do poeta, "uma linguagem dentro da linguagem", que, por ser assim, intensifica os valores da experiência.
Entre 1924 e 1944, serão publicados os cinco volumes de "Variété", reunindo conferências, prefácios, discursos, ensaios -tudo aquilo que de mais importante foi possível a Valéry preservar na forma mais permanente de livro.
Para compreender a importância ensaística dos dois primeiros volumes, publicados nos anos 20, basta mencionar os assuntos tratados: no primeiro, ensaios sobre La Fontaine, teoria da poesia, Poe, Pascal, uma homenagem a Proust e a "Introdução ao Método de Leonardo Da Vinci', seguida de "Note et Digression"; no segundo, dois textos sobre Descartes, ensaios sobre Bossuet, Montesquieu, Stendhal, Baudelaire, Verlaine, Huysmans e quatro textos sobre Mallarmé, além de textos sobre mitos e sonhos.
Pode-se perceber, portanto, como, juntamente com as peças de criação, os volumes de "Variété" solidificam a imagem pública de Valéry, o que, certamente, concorreu para que, em 1927, fosse eleito para a Academia Francesa -onde ficou célebre e causou controvérsia o discurso que fez sobre o seu antecessor, Anatole France, sem que em nenhum momento citasse o nome do escritor.
Dos ensaios mencionados de "Variété", vale a pena destacar "Situation de Baudelaire" (do segundo volume), em que Valéry configura, de modo preciso, não apenas a importância francesa e européia da publicação de "Les Fleurs du Mal", como marca a sua própria filiação a uma vertente da poesia francesa simbolista que seria decorrente da presença de Baudelaire naquela tradição que se inaugurou depois da vasta obra de Victor Hugo: a vertente representada pelos nomes de Verlaine, Mallarmé e Rimbaud. Três poetas para os quais, segundo Valéry, foi decisiva a leitura, e a influência daí resultante, de Baudelaire:
"(...) o sentido do íntimo e a mistura poderosa e turva da emoção mística e do ardor sensual que se desenvolvem em Verlaine; o frenesi da partida, o movimento de impaciência excitado pelo universo, a profunda consciência das sensações e de suas ressonâncias harmoniosas, que tornam tão enérgica e tão ativa a obra breve e violenta de Rimbaud, estão nitidamente presentes e reconhecíveis em Baudelaire. Quanto a Stéphane Mallarmé, cujos primeiros versos poderiam se confundir com os mais belos e os mais densos das `Flores do Mal', ele continuou, em suas consequências mais sutis, as pesquisas formais e técnicas de que as análises de Edgar Poe e os ensaios e os comentários de Baudelaire lhe haviam comunicado a paixão e ensinado a importância. Enquanto Verlaine e Rimbaud continuaram Baudelaire na ordem do sentimento e da sensação, Mallarmé o prolongou no domínio da perfeição e da pureza poética".
Como não reconhecer na última afirmação, sobre o traço decisivo da importância de Mallarmé, a herança com que se teve de haver Paul Valéry?
Já no importante prefácio que escreveu para o livro de poemas de Lucien Fabre, "La Connaissance de la Déesse", publicado em 1920, Valéry abordara a questão da "poesia pura", considerando-a como um ideal a ser atingido pela própria evolução da linguagem poética a partir de Baudelaire e do simbolismo: "No horizonte, sempre, a poesia pura... Lá, o perigo; lá, precisamente, nossa perda; e lá mesmo, o fim".
Este texto, que está no primeiro volume de "Variété", seria melhor reconsiderado no ensaio "Poésie Pure", de 1928. E o que é mais importante neste ensaio é o fato de Valéry buscar desfazer o equívoco criado em torno da expressão utilizada no "Prefácio": propondo que se possa substituí-la por "poesia absoluta", chama a atenção, sobretudo, para o fato de que não se trata de uma acepção moralista de pureza, mas, antes, analítica. "A incoveniência deste termo `poesia pura' -diz ele- é fazer sonhar com uma pureza moral que não está aqui em questão, sendo a idéia de poesia pura, ao contrário, para mim, uma idéia essencialmente analítica".
A mesma atitude analítica defendida pelo poeta nesses textos está também em outro, "Propos Sur la Poésie" (1928). Em todos, a fundamental articulação entre idéias gerais acerca da estrutura da poesia e a paciente e atenta análise das relações entre linguagem, poesia e poeta, tudo a partir de sua própria experiência com a escrita ininterrupta dos "Cahiers". Uma espécie de materialismo linguístico fundado na experiência com os deslocamentos incessantes entre som e sentido, limites e possibilidades da atividade poética.
Tal e qual: a reflexão "en abime" não mais deixará Valéry. Seja na composição dos poucos poemas dos anos 30 e 40, seja na realização dos melodramas "Amphion" e "Sémiramis", seja na recuperação do mito faústico em "Mon Faust", seja, enfim, nas muitas coletâneas de ensaios, como os três volumes de "Variéte", os dois de "Tel Quel", o volume de ensaios políticos "Regards Sur le Monde Actuel" ou aquele sobre artes, "Pièces Sur l'Art".
Por outro lado, esta qualidade da reflexão valeryana é também responsável pela característica fragmentária de seus textos: uma busca obsessiva que implica na repetição e que chega a beirar o solipsismo. Por isso, já se disse, e creio com razão, que, talvez, o melhor Valéry nunca esteja onde se está lendo: cada um de seus textos faz pensar noutro texto e obriga à releitura.
Personagem e autor implícito daquela Comédia Intelectual com que sonhava desde, pelo menos, 1919, nas duas últimas décadas de sua vida, Valéry revela-se ele próprio um sujeito fragmentário, existindo, por um lado, entre o decoro acadêmico, a fama internacional e a recepção generalizada como um poeta neoclássico e, por outro, como o secreto autor dos "Cahiers", conhecido aqui e ali por volumes contendo extratos daquele trabalho de Sísifo, ou o teórico do anarquismo (somente revelado com a publicação, graças a seu filho François Valéry, do livro "Os Princípios da Anarquia Pura e Aplicada", em 1984).
Creio que quem melhor apreendeu as dualidades de Valéry, sobretudo aquelas explicitadas em seus últimos anos, foi o crítico norte-americano Roger Shattuck. Num ensaio em que busca caracterizar aquelas dualidades, sugestivamente intitulado "Paul Valéry: Sportsman and Barbarian" (in "The Innocent Eye"), Shattuck reflete, por um lado, acerca da possibilidade de conciliação entre o autor "difícil" -aquele que tinha a "poesia pura" como horizonte ideal de atividade e o autor das inscrições murais no Palais de Chaillot, o Museu do Homem, realizadas em 1937- e, por outro, o escritor para quem, em suas próprias palavras, "no futuro, o papel da literatura será próximo ao de um esporte".
No primeiro caso, as quatro estrofes de cinco versos, escritas com a concisão e a objetividade próprias à ocasião, conservam, no entanto, a austeridade do verso à maneira clássica de que as duas estrofes iniciais podem servir de exemplo:

"Il dépend de celui qui passe
Que je sois tombe ou trésor
Que je parle ou me taise
Ceci ne tient qu'à toi
Ami n'entre pas sans désir

Tout homme crée sans le savoir
Comme il respire
Mais l'artiste se sent créer
Son acte engage tout son être
Sa peine bien-aimée le fortifie"(*)

Comentando o conjunto das inscrições, diz Shattuck:
"Valéry não pode ser classificado como o último grande devoto da arte pela arte. Esta ocasião bastante institucional permitiu a Valéry ficar completamente à vontade na fronteira sem mapa que liga o jornalismo à poesia, eleva os sentimentos a intimidades, o espírito criativo ao ato público, o corpo à mente".
Por outro lado, a concepção da literatura, para o futuro, como um jogo não é tão corriqueira quanto possa parecer. Na verdade -e neste sentido muito próximo das reflexões de um grande pensador seu contemporâneo, o filósofo Wittgenstein-, para Valéry o jogo da arte tem antes que ver com a própria interioridade dos fundamentos da linguagem e suas relações com o pensamento.
Deste modo, diz Shattuck, "a arte não como um supremo valor espiritual ou uma nova crença, nem como algo puramente decorativo ou sem propósito. Antes a arte, competindo com as forças reais e as promessas da ciência, se tornará um valioso exercício de atos mentais, um processo cujos produtos estão atrás da marca, exceto na medida em que melhoram, ampliam e ultrapassam o jogo".
Entre o "bárbaro", para quem a poesia podia ter uma função pragmática que a afastava dos horizontes ideais da "pureza e do absoluto, e o "esportista" do futuro, jogando com a seriedade das regras estritas da linguagem, Valéry manteve a postura levemente dramática, levemente cômica, de quem se sabia contraditório.
Um crítico recente chega a apontar a ironia de, ao mesmo tempo, ter sido ele o último poeta a ter honrarias nacionais quando de seu sepultamento e ser, no essencial, isto é, naquilo que, secretamente, trabalhava sem cessar nos "Cahiers", um desconhecido para o leitor médio de seu tempo.
Um autor que, vindo do século 19, nascendo no momento mesmo da Guerra Franco-Prussiana, vivendo as duas Guerras Mundiais do século 20, projeta-se, como já observou Italo Calvino, para o pórtico do próximo milênio. Quando, quem sabe, será um capítulo decisivo daquela tão sonhada Comédia Intelectual a escrever.

(*) Depende daquele que passa/ que eu seja tumba ou tesouro/ que eu fale ou me cale/ isso só diz respeito a você/ amigo não entre sem desejo// Todo homem cria sem saber/ como respira/ mas o artista sente-se criar/ seu ato compromete todo seu ser/ sua bem-amada pena o fortifica (tradução literal)

Texto Anterior: UMA COMÉDIA INTELECTUAL
Próximo Texto: "CAHIERS"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.