São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A escultura do silêncio

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

Na história da filosofia e da literatura, um mergulho radical na linguagem quase sempre representa um distanciamento irônico em relação à realidade -ou em relação àquilo que a realidade era, antes de ser transformada em pura representação.
A obra de Valéry duplica essa ironia: talvez por ter sistematizado como nenhum outro escritor os exercícios de formalização do pensamento, ele acabou por se refugiar no silêncio de sua própria escritura, na ação que precede a realização poética.
Os "Cahiers" não são outra coisa -na forma e no conteúdo- do que uma escultura do silêncio: 20 anos que marcam uma interrupção da produção poética de Valéry e nos quais ele elabora uma monumental (embora fragmentária) rejeição do significado da própria linguagem.
O resultado mais visível desse ascetismo poético de Valéry é certamente a "poesia absoluta" de "A Jovem Parca" e do "Cemitério Marinho" -que rompem sua reclusão artística por meio de versos que têm como única matéria-prima os próprios limites da criação poética, as "hesitações entre o som e o sentido, conforme sua formulação nos "Cahiers".
Essa poesia dessubjetivada, que apaga os vestígios de seu autor e deixa aflorar apenas as possibilidades do jogo formal, a superfície da linguagem, acabaria por seduzir os filósofos.
O filósofo alemão Walter Benjamin, por exemplo, viu na poesia cerebral de Valéry a expressão perfeita de um diálogo "entre a inteligência e a voz -diálogo cuja materialidade linguística negaria, a um só tempo, a associação do lírico à dimensão do eu e, por extensão, a individualidade.
A admiração de Benjamin pelo lirismo intelectual de Valéry certamente fazia justiça ao conteúdo antimetafísico do "pensamento" do escritor francês.
Seus "Cahiers" contêm, de fato, inúmeros aforismos que revelam uma genuína aversão de Valéry a tudo o que representasse uma crença antropomórfica na existência dos objetos.
"Le monde est ma représentation" é uma frase que vale por uma profissão de fé -e não seria exagero ouvir aí ecos de Nietzsche, o filósofo que iniciou a tradição moderna de desafio ao idealismo platônico.
Entretanto, Valéry manifestava, paralelamente, um triunfal desprezo pela filosofia e por sua transformação da linguagem num "fim", na teleologia restaurada de seus próprios enunciados.
Nietzsche, por exemplo, teria incorrido no equívoco de sacrificar o uso das virtualidades poéticas (e, portanto, linguísticas) da filosofia a objetivos externos à própria tessitura dos textos filosóficos -o que, para Valéry, significava uma recaída na metafísica pelo reconhecimento de uma alteridade.
Por essa razão, num ensaio recentemente publicado pela revista norte-americana "Critical Inquiry", o pensador francês Jacques Bouveresse chega a falar da "antifilosofia de Valéry, numa inesperada aproximação do escritor ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.
Bouveresse aproxima Valéry aos positivistas lógicos e diz que, como Wittgenstein, o poeta francês não acreditava na possibilidade de conhecimento empírico do mundo por meio da dedução lógica -já que a lógica da linguagem, transferida para o mundo, seria ainda uma mirada antropomórfica sobre a "realidade".
Ao afirmar que "pode haver uma técnica do pensamento, comparável à técnica do verso", Valéry estaria em consonância com a idéia de Wittgenstein de que à filosofia caberia apenas construir enunciados perfeitos -sem a necessidade de que suas figurações correspondam ao mundo exterior.
Isso explicaria, também, a concepção francamente positiva que Valéry tinha das ciências. Para o autor dos "Cahiers", o conhecimento científico correspondia a um avanço do poder do homem sobre o mundo.
Ao contrário dos positivistas, porém, o Valéry de Bouveresse não acreditaria na verdade intrínseca das descobertas científicas -cujo poder de previsão seria meramente estatístico e inessencial.
Além disso, a superioridade da ciência sobre a filosofia residiria no fato que, como a poesia, as ciências teriam sabido criar uma nova linguagem, desviante em relação à linguagem ordinária e que, por isso, não estaria eivada pela ilusão de que as palavras seriam uma tradução do real.
Na leitura filosófica de Bouveresse, portanto, a antifilosofia de Valéry aparece como um canto de louvor ao acaso das verdades provisórias das ciências, que criam a sua própria linguagem.
E essa linguagem provisória, artificial, permite-nos observar, em contrapartida, que a linguagem poética traz em si uma nova objetividade, a única objetividade possibilitada pela escritura dos "Cahiers": a exterioridade física e descontínua entre o ato da criação verbal e da leitura de sua superfície material.

Texto Anterior: "CAHIERS"
Próximo Texto: França faz homenagens
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.